Luis Eduardo Leal*, especial para o Roque Reverso
Todos esses anos atrás, quando eu era jovem, muito mais jovem do que hoje, vi por todos os lados a icônica imagem dele, na televisão, nas revistas, nos jornais, em todas as bancas onipresentes, então. Mas não conseguia entender a importância daquele homem caído (na minha imaginação, não há fotos que eu saiba da calçada do Dakota), morto na porta de casa como tantos anônimos, assassinados mundo afora em todos os tempos.
Na escola me diziam que eu era a cara dele, o que me irritava porque o achava feio (rs) – eu também! Pra me defender, dizia que não era narigudo (feio sim, narigudo não!), sem perceber que ali estava um gênio do século 20, um ser humano notável. De qualquer forma, tremendo bullying prum magrelinho de óculos redondos que ainda não conseguia entender inglês em toda sua beleza, nem harmonias vocais, muito menos poesia popular na melhor forma.
John Lennon nos deixou há 45 anos neste mês de dezembro, no dia 8, e continuo a lembrar demais de suas imagens caminhando pelo Central Park com Yoko, já maduro, ou as muitas cenas de alegria nos vídeos, filmes e shows, onde ele sempre parecia ser o cara da banda que mais se divertia. E, por um certo tempo, a voz talvez mais notável, dominante, de todas aquelas vozes e sons melodiosos.
Eram quatro fabulosos que, juntos, conseguiam rimar simplicidade e sofisticação elevados a estado de arte. Podia até haver vaidade ali, mas a combinação era angelical.
Comecei a prestar mais atenção no sujeito quando George Harrison lançou “All Those Years Ago”, muito tocada nas rádios no começo dos anos 1980. Adorava a melodia, como vim a adorar depois todas as melodias maravilhosas que esses caras, e George Martin, criaram em tantos discos, todos nascidos clássicos.
Anos depois quando comecei a dedilhar o piano, ali pelos 16 anos se impuseram dois objetivos básicos: aprender “London, London” na versão Schiavon (RPM), porque julgava que me renderia crédito com as garotas, e, mais desafiador, o trecho de cravo de “In my Life”, do álbum “Rubber Soul”, com o qual estou labutando ainda hoje.
No meio de uma canção pop, aparece algo como Scarlatti ou Bach, magnífico realmente, direto na alma – ideia, fiquei sabendo, de George Martin: os caras eram bons, mas também sabiam com quem trabalhar e desenvolver a forma.
Curiosamente, “In my Life” é uma música sobre memória afetiva, sobre a antiga Liverpool, bem como sobre amigos e amores perdidos, conforme assinalado pelo próprio Lennon (confiram a bela edição de “The Beatles – A história por trás de todas as canções”, de Steve Turner, editado no Brasil pela extinta e saudosa Cosac Naify).
A letra diz: “Há lugares de que sempre vou lembrar a vida toda, ainda que alguns tenham mudado; alguns para sempre, não para melhor; alguns se foram, outros permanecem”. E continua o poema escrito por John e musicado por Paul: “Todos esses lugares tiveram seus momentos, com amores e amigos, ainda me lembro; alguns morreram e alguns estão vivos; em minha vida, amei-os todos.”
Curiosamente de novo, “In my Life” e “Rubber Soul” completaram 60 anos de lançamento poucos dias atrás, neste começo de mês de dezembro.
Segundo Turner, a canção era considerada por Lennon como um ponto importante em seu amadurecimento como compositor, mais intimista e confessional.
Na passagem sobre amigos mortos, o próprio Lennon teria dito, conforme Turner, que tinha em mente, entre outros, Stuart Sutcliffe, companheiro Beatle dos primórdios, morto em consequência de um tumor no cérebro em 1962.
Embora grande admirador, não sou um Beatlemaníaco certificado, com amplo e minucioso conhecimento da banda como certamente dezenas ou centenas de milhares ao redor do globo, então vou recorrer mesmo a George Harrison para encerrar essa pequena memória pessoal com um dos hinos à amizade e à admiração mais lindos já escritos: Todos esses anos atrás, All Those years Ago.
No calor da perda do parceiro, Harrison – que também nos deixou, em 2001 – deu a sua percepção de primeira mão sobre quem foi aquele homem. Perdoem a tradução deste clássico pop, de maio de 1981, menos de seis meses após o cruel assassinato de Lennon:
“Todos esses anos atrás
Estou gritando tudo sobre amor
quando te trataram como um cão
E você foi quem deixou isso tão claro [o valor do amor]
tantos anos atrás
Sempre falando sobre como doar
Eles não agem com muita honestidade,
mas você mostrou o caminho da verdade ao dizer
Tudo o que se precisa é de amor
Vivendo com o bom e o mau
Ah, eu sempre te admirei
E agora nos deixaram frios e tristes
Feito por alguém que é o melhor amigo do demo
Alguém que atacou e ofendeu a todos
Estamos vivendo um sonho ruim
Esqueceu-se tudo sobre humanidade
E você foi aquele espremido contra a parede
tantos anos atrás
Você foi aquele que imaginou tudo
tantos anos atrás
Todos esses anos atrás
Na profunda noite mais escura
Te mando a minha oração
Agora no mundo da luz
onde o espírito é livre das mentiras,
de tudo o que desprezávamos
Esqueceram tudo sobre Deus
Ele é a única razão de existirmos
E você, o cara, era aquele que todos achavam tão estranho
Todos aqueles anos atrás
Você disse tudo apesar de muitos não terem ouvido
Tantos anos atrás
Você tinha controle de nossos sorrisos e de nossas lágrimas
Todos aqueles anos atrás
Todos aqueles anos atrás”
Lennon se foi há 45 anos, mas ele sempre continuará conosco