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Nelson Souza Lima – especial para o Combate Rock

Pegando carona num dos versos de “Tempos Modernos”, de Lulu Santos, o título acima se refere ao abominável ato de cercear direitos dos cidadãos e todas as implicações que assolam este país desde tempos imemoriáveis. Segundo o Aurélio, a censura é “embasada em critérios morais ou políticos, para julgar a conveniência de sua liberação à exibição pública, publicação ou divulgação”.  

Ao longo de nossa história cercear e ceifar direitos norteou aqueles que estão no poder, para por intermédio, de meios repressivos se perpetuar no poder. Coisa muito presente nos atos do destrambelhado que, por enquanto, ocupa a cadeira presidencial.

Lançado recentemente pela Sonora Editora a obra “Mordaça – Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários” lança luz sobre o tema e como devemos nos atentar para que não ocorra de forma mais acirrada.

Os autores João Pimentel e Zé McGill foram fundo na pesquisa apurando que o ato de censurar sempre esteve presente de forma mais leve ou extremamente violenta e opressora.

De acordo com os jornalistas o pior período para artistas e cidadãos em nosso país rolou durante o famigerado Ato Institucional Nº 5 (AI-5) decretado em 13 de dezembro de 1968 o qual muitos incautos insistem na volta.

De acordo com McGill, a ideia surgiu em 2018 para lembrar os 50 anos do AI-5. “Fomos procurados pelo nosso editor, o Michel Jamel, da Sonora, com a proposta de fazer um livro sobre os 50 anos do AI-5, em 2018. Eu e o João Pimentel não nos conhecíamos antes desse trabalho, fomos ‘juntados’ pelo editor. E hoje posso dizer que não consigo pensar num parceiro melhor que ele para essa luta do “Mordaça”. O tempo era curto para realizar o livro na data pretendida, mas o obscurantismo do governo atual tornou o trabalho ainda mais necessário.”

Todas as manifestações artísticas sofriam com a ação policialesca dos censores, mas a música foi o alvo principal da repressão. “Mordaça” traz 29 relatos, sobretudo compositores, mas há também o depoimento de João Carlos Muller, advogado de gravadoras e artistas que soube muito bem burlar a falta de inteligência dos censores e, assim, conseguir a liberação de várias canções. Muller, infelizmente falecido em 2021, vítima da Covid é reverenciado no livro.

Zé McGill enaltece o trabalho de Muller e toda sua luta contra a censura. “É um personagem fundamental da história de música e censura no Brasil. Ele era o advogado da gravadora Polygram, que tinha o maior número de estrelas da MPB naquele tempo, e ia pessoalmente até a sede da Censura discutir e tentar a liberação das letras vetadas junto aos censores. Se não fosse pelo trabalho dele, provavelmente não teríamos conhecido muitos dos clássicos da nossa música, especialmente alguns do Chico Buarque. Escolhemos abrir o livro com um capítulo sobre a história do João Carlos Muller porque ele nos oferece um panorama geral de como funcionava a Censura e os seus bastidores, além de ele nos contar histórias hilárias, como aquela em que ele acompanha um coronel ao dentista”, atesta.

“Mordaça” é um livro mais que necessário para entendermos o momento funesto que vivemos e não permitirmos a volta da censura nunca mais. Por mais que ela insista em nos rodear.

Abaixo a entrevista completa com João Pimentel e Zé McGill:

Combate Rock – A partir de que momento você e o Pimentel tiveram a ideia de escrever a obra? E como ela se conecta com o atual momento que vivemos?

João Pimentel/Zé McGill – Fomos procurados pelo nosso editor, o Michel Jamel, da Sonora, com a proposta de fazer um livro sobre os 50 anos do AI-5, em 2018. Eu e o João Pimentel não nos conhecíamos antes desse trabalho, fomos “juntados” pelo editor. E hoje posso dizer que não consigo pensar num parceiro melhor que ele para essa luta do Mordaça. O tempo era curto para realizar o livro na data pretendida, mas o obscurantismo do governo atual tornou o trabalho ainda mais necessário. E ele acabou se tornando mais amplo, e focando mais na censura, quando vimos que não daria tempo de entregar a obra no prazo de 2018. Diria que o livro saiu na hora certa, neste cenário macabro da pandemia, mas com a sociedade se mobilizando para reverter esse quadro político sombrio. As conexões entre o livro e o atual momento são muitas, mas especialmente o fato de termos voltado a ver casos de censura surgindo atualmente, como nos anos da ditadura militar.

CR- O trabalho de pesquisa de vocês foi minucioso, pois foram nos primórdios da história do Brasil. Cerceamento de direitos, censura, manipulação e violência sempre estiveram presentes. Tudo isso serviu pra criar no brasileiro esse clima de hostilidade permanente. Ou pra vocês isso tá enraizado na gente e não tem como mudar?

JP/ZM – Há outras coisas que serviram para criar esse clima de hostilidade, como o mau trabalho da grande mídia na época do golpe de 2016. O que fez o Jornal Nacional, por exemplo, aquela campanha/teatro contra o PT, foi uma covardia e acabou contribuindo para gerar o monstro que temos hoje na presidência. Mas, por outro lado, acho que o conservadorismo, o ódio de classes e o costume das proibições estão sim enraizados na nossa sociedade há séculos, o que é triste, e duro de se reverter.

CR – Entre tantos relatos impressionantes, o que mais chamou atenção de vocês? Havia uma série de fatores para que os censores liberassem ou não uma música. Sem contar a falta de inteligência de muitos censores.

JP/ZM- Primeiro, me chamou a atenção a receptividade dos entrevistados. Desde Chico e Caetano até Clemente e Ricardo Vilas, todos foram muito receptivos. Inclusive, fiquei com a impressão de que muitos deles estavam com as histórias de censura entaladas na garganta, apenas esperando que alguém os perguntasse sobre o assunto. Acredito que o fato de estarmos vivendo novamente sob um governo autoritário tenha contribuído para estimular os artistas. Me chamou a atenção também a capacidade de resistência desses artistas (na verdade, o que vemos no livro são aulas de resistência) e o baixo nível intelectual dos censores. Mas acabamos percebendo, depois de tanto trabalho e pesquisa, que uma das bases da censura é a hipocrisia. A maioria dos vetos, quando não por motivos estritamente políticos,  é revestida dos mais distintos níveis de hipocrisia. A censura no Brasil sempre foi altamente racista e homofóbica, mas a defesa da “moral” e dos “bons costumes”, da “família brasileira”, aparece o tempo todo no livro.

CR- Falando em censores, vocês tentaram contatar algum deles? Principalmente a mitológica Solange Hernandes (“homenageada” por Léo Jaime, em uma boa versão do clássico “So Lonely”, de The Police), que após deixar o cargo mudou de nome pra buscar anonimato.

JP/ZM- Sim, tentamos entrevistar alguns censores através de contatos que conseguimos de colegas jornalistas. Mas, na maioria dos casos, não conseguimos entrar em contato ou descobrimos que a pessoa já estava morta, como no caso da Dona Solange, que morreu em 2013, meio escondida numa casa de muros altos, em Ribeirão Preto. Acho que o que naquela época era orgulho por ter um cargo considerado nobre por muitos, e bem pago, com o tempo se transformou em vergonha, e os antigos censores que ainda estão vivos não querem falar sobre o assunto.

CR- Vendo alguns comentários nas redes sociais é claro que “Mordaça” não agradou a todos. Alguns haters dizem que a maioria dos relatos é de comunistas que se beneficiavam das Leis de Incentivo nos governos petistas. O que acha disso?

JP/ZM- Nós já esperávamos por isso. E nos preparamos espiritualmente para isso, também. Vivemos um tempo de muito ódio e muita burrice. Parece que as pessoas não sabem ou têm preguiça de pensar. No meu caso, faço a opção de não responder a estes eventuais ataques. Até porque, como é possível discutir com pessoas que ainda defendem o presidente depois de ele se dizer favorável à tortura, depois de destruir a economia do país, depois de causar um genocídio durante a pandemia? Como discutir com negacionistas, terraplanistas e outros istas? Como discutir com pessoas que são contra o pensamento? Difícil. E, honestamente, os artistas que entrevistamos são muito maiores do que qualquer Lei de Incentivo…

CR- “Mordaça” tem recebido muitos elogios pela sua importância em relatar um período muito negativo da história do Brasil. Muitos pedem a volta do AI-5 (Ato Institucional N° 5, decretado em 13 de dezembro de 1968). Será que essas pessoas têm noção do que foi o AI-5?

JP/ZM- O pior é que acho que algumas dessas pessoas têm sim noção do que foi o AI-5. Mas a maioria, talvez não. São pessoas conservadoras e reacionárias, no sentido de reação contra os direitos individuais conquistados nos últimos anos. Isso é parte do velho ódio de classes do Brasil, mas também passa muito pela falta de educação, cultura e de pensamento mesmo. E é claro que o nosso livro tem um foco maior sobre o período do regime militar, mas nós deixamos claro, desde o subtítulo do livro (Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários) que não tratamos apenas desse período no Mordaça. Falamos sobre antes, durante e depois da ditadura, até porque os entrevistados acabavam naturalmente falando sobre os pantanosos anos Bolsonaro em nossas conversas, e sobre os vários casos de censura que têm acontecido nos últimos anos.

CR- E a Censura não aliviava o lado de ninguém, Até cantores ditos bregas e, aparentemente inofensivos para o Regime Militar, também sofreram com os censores. Vide as referências que você faz ao “Eu Não Sou Cachorro, Não”, do Paulo César Araújo.

JP/ZM- É verdade. Apesar de ser sempre hipócrita, moralista, racista e homofóbica, a Censura não fazia distinção de gêneros musicais. Tanto que temos casos, no livro, de artistas censurados do samba, da mpb, do pop, do rock, do punk rock, da música romântica etc. O livro do PC Araújo foi uma referência importante para nós, e, muito por conta dele, fiz questão de entrevistar o Odair José, de quem adoro as músicas e com quem adorei conversar. Ele bate muito nessa tecla da hipocrisia da sociedade brasileira, com toda a razão. É um dos capítulos de que eu mais gosto.

CR- O que esperam do cenário político este ano. A disputa eleitoral promete ser feroz.

JP/ZM- Este promete ser mais um ano turbulento, infelizmente. Por conta das eleições, podemos esperar muita agressividade, fake news e todo tipo de reação do lado que, esperamos, será derrotado. E nós e o Mordaça estaremos nessa luta. Esperamos que o livro ajude a combater possíveis esquecimentos, tão comuns no nosso país de “memória curta”.

CR- Os artistas tiveram um papel fundamental no combate à Ditadura Militar. Porém, João Carlos Muller merece todas as honrarias. Comentem um pouco sobre ele.

JP/ZM- O João Carlos Muller, que infelizmente morreu, vítima da Covid, em 2021, e a quem o livro também é dedicado, é um personagem fundamental da história de música e censura no Brasil. Ele era o advogado da gravadora Polygram, que tinha o maior número de estrelas da MPB naquele tempo, e ia pessoalmente até a sede da Censura discutir e tentar a liberação das letras vetadas junto aos censores. Se não fosse pelo trabalho dele, provavelmente não teríamos conhecido muitos dos clássicos da nossa música, especialmente alguns do Chico Buarque. Escolhemos abrir o livro com um capítulo sobre a história do João Carlos Muller porque ele nos oferece um panorama geral de como funcionava a Censura e os seus bastidores, além de ele nos contar histórias hilárias, como aquela em que ele acompanha um coronel ao dentista..

CR- Por fim e direto. O Brasil tem jeito?

JP/ZM- A longo prazo, não sei. A curto prazo, acredito que temos um jeito de melhorar. E esse jeito é a eleição de Lula, ainda no primeiro turno, nas eleições de outubro. Não acho que o Lula seja santo ou herói, mas penso que ele é o maior presidente da história do Brasil, e ele está aí, cheio de disposição para tentar reconstruir o país. Acho mesmo que as pessoas que se dizem progressistas no Brasil têm o dever de dar o seu voto ao Lula em outubro.