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 Marcelo Moreira

Detroit, a cidade da pesada. Muita gente torceu o nariz quando a cidade maior de Michigan, estado ao norte dos Estados Unidos, ganhou destaque por causa do som pesado, corrosivo e cáustico de suas bandas de rock garageiras, fazendo um som violento nunca visto na América. 

Como pode a mesma cidade que produziu gemas como o melhor do que a música produziu, com a gravadora Motown, ter se tornado a cidade do barulho, fabricando a gênese do punk rock?

O som pesado e violento foi cortesia de bandas seminais como MC5 e The Stooges, que condensaram todas as influências industriais, metálicas e mecânicas de uma cidade que se tornou conhecida mundialmente como um dos polos industriais mais importantes de nosso tempo.

“Fun House”, dos Stooges, liderado pelo insano Iggy Pop, foi lançado em 1970 e talvez represente o mais bem acabado “barulho” da meca dos automóveis. 

Em apenas sete músicas o quarteto de doidões expôs todas as cartas para estabelecer um novo padrão de música agressiva – uma exposição disseminada de violência sonora, insanidade e potência.

A história mostra que tinha de ser em Detroit a matriz do som urgente e pesado que viria com alguns dos principais nomes do rock underground da cidade. 

Assim como Chicago se tornou a meca do blues reunindo gente de todos os lugares, a maior cidade de Michigan atraiu por um tempo milhares e milhares de migrantes em busca da prosperidade prometida pela indústria automobilística. 

Negros do sul, descendentes de europeus e desempregados dos rincões do interior formataram uma mistura explosiva de culturas e influências que ultrapassa a aura cosmopolita de Nova York, a diversidade cultural de Los Angeles, a mistura explosiva de country e blues do Texas e a a própria modernização do blues ocorrida em Chicago. 

Os moldes da música pop pré-fabricada e meio plastificada da Motown do final dos anos 70 já não era mais suficiente. O quente era a cultura de garagem e de música de boteco que explodia nos bares barra pesada de Detroit.

“Fun House” é uma verdadeira carta de intenções de um pretenso movimento que não se consumou naquele momento. Música crua e agressiva, com guitarras cortantes, baixo hipnótico do tipo marcial e uma bateria espancada que dava o tom do que viria.

Tudo ali é urgente. “Down on the Street” é uma declaração de guerra, com a guitarra lancinante de Ron Asheton gritando nos alto-falantes seguida pelos guinchos perigosos de Iggy Pop.

“Loose” vem em seguida e não alivia, mostrando o tamanho do estrago que os Stooges estavam preparando. A sacana “TV Eye” injeta groove naquele mar de agressividade e “Dirt” mantém a pegada, com o baixo de David Alexander comandando as ações.

“1970” também pega pesado, mas com um pouco mais de harmonia inserida na condução dos trabalhos, preparando o terreno para a insanidade com toques punk de “Fun House”, que ousou inserir o saxofone maluco de Steve Mackay para marcar posição na balbúrdia sonora que misturava rock, blues, soul e jazz.

O fim com “LA Blues” é uma autêntica ressaca depois do furacão, uma grande jam onde a liberdade era o mais importante, reunindo improvisações e muito feeling de músicos já experientes na cena local, apesar de muito jovens.

A repercussão na época do lançamento foi pequena. Vendeu pouco, mas mostrou muitos caminhos para o futuro da música pesada e agressiva. Virou bíblia sete anos depois para toda uma geração sedenta por quebrar paradigmas e criar algo novo em cima de escombros. 

Enquanto Iggy Pop se enfurnava em Berlim com o amigo David Bowie por volta de 1977 para criar obras modernas e intensas dentro do pop, o punk rock varria o mundo tendo os petardos de Stooges e MC5 como manual para quebrar tudo e demolir o establishment. Demorou até que Iggy percebesse o que estava acontecendo, ficando desconcertado e desconfortável em um primeiro momento.

Os 50 anos de “Fun House” emergem como um lembrete de que o rock já foi agressivo e violento bem antes do punk e do metal – dois gêneros musicais que devem bastante a Stooges, MC5, Amboy Dukes e Mitch Ryder, entre outros.

A revista Poeira Zine, em sua edição n° 20, de agosto de 2008, fez um ótimo apanhado sobre o som de Detroit e o lançamento de “Fun House”. É leitura obrigatória. O texto foi republicado no site da revista em 2014 e pode ser lido clicando aqui.