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 Marcelo Moreira

Um dos momentos mais interessantes da falta de noção roqueira ocorreu ainda no final dos anos 60, em plena era psicodélica. “Head” foi o único longa-metragem do grupo musical Monkees, formado por uma emissora de TV a partir de uma seleção nacional nos Estados Unidos para o elenco de um seriado de TV.

O filme, dirigido por Bob Rafelson e com roteiro de Jack Nicholson, foi rodado em meio à crise entre os atores/músicos e a direção do seriado. Quando chegou às telas, em 1968, o seriado já tinha sido cancelado e a banda logo se esfacelaria.

Dependendo do ponto de vista, a fita é uma porcaria, sem roteiro, sem pé nem cabeça, puro desperdício de tempo e dinheiro. Por outro lado, há quem o ache uma obra-prima de criatividade, um apelo ao nonsense bem feito e com ótimas piadas e sacadas, ou seja, seria um cinema intelectual e experimental que zoou com o mundo pop. 

Uma das cenas emblemáticas é o embate, no deserto, entre o vocalista e baterista Micky Dolenz e uma máquina de refrigerantes, daquelas que fornece a latinha ou garrafinha depois de depositada uma moeda.

Micky Dolenz x Máquina de Refrigerante no deserto (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Em papo existencial de louco, Dolenz tenta convencer a máquina sobre a importância do universo na condução da vida das pessoas, ao mesmo tempo em que a espanca em busca de algo para beber. 

A cena é tão hilária e estapafúrdia, sem qualquer noção e sem qualquer justificativa, que caba sendo engraçada, em uma crítica velada aos hippies convertidos e cegos pelo flower power e aos céticos descrentes em tudo. Entretanto, realça toda a insanidade de uma sociedade consumista e materialista.

Essa cena roqueira, de um filme roqueiro, me veio à cabeça imediatamente quando soube da carreata com meia dúzia de pessoas, na avenida Paulista, neste domingo, contra o governador João Doria e a vacinação obrigatória. 

São altas as doses de insanidade – doses perigosas, que matam. Eram muito poucos no protesto, não chegavam a 200 otários, mas é um sintoma grave de uma doença que mata, e mata bastante: a ignorância.

Assim como nos Estados Unidos, estamos aqui em uma guerra contra a ignorância e contra imbecis que se dizem orgulhosos de serem ignorantes. O que diria o cientista Albert Sabin, o mestre que era sinônimo de vacinas, a respeito do pensamento jumentino dessa gente?

Os imbecis que enfrentaram o frio e a garoa paulistana eram todos bolsonaristas, o que explica, em ande parte, a estupidez do ato. Era como se todos eles estivessem espancando uma máquina de refrigerantes tentando convencê-la a ignorar a “vacina chinesa” e a não se vacinar.

O cientista politico e professor universitário Carlos Mello resumiu bem, em sua coluna semanal na rádio CBN São Paulo, a insanidade da luta dos antivacinas:

“Quem frequentou a antiga escola primária nos anos 60 e 70 conviveu com alguns surtos de poliomielite e viu a consequência das crianças vítimas. E isso vale para todas as outras doenças importantes que foram erradicadas, mas que na época eram mortais, e falo de sarampo, meningite. A coisa era tão severa que não se discutia se haveria ou não vacinação. Era uma questão de saúde pública e não importavam questões ideológicas. Tinha de vacinar e acabou. A minha e a sua saúde dependem da extensão grande da cobertura vacinal. Discutir obrigatoriedade de vacinar as pessoas é algo completamente insano quando se trata de direito coletivo. Não cabe qualquer questionamento a esse respeito. Tem de vacinar de qualquer jeito.”

Questionar a obrigatoriedade e a origem da vacina é o mesmo que discutir com uma máquina de refrigerantes.ar  É a insanidade em grau máximo. E sair às ruas para exaltar essa insanidade como uma qualidade é mais do que ter orgulho da própria ignorância – é burrice pura e simples.

O mundo bolsonaro tentou criar uma realidade paralela e só atraiu seres lesados. A ignorância como método político funciona nos primeiros cinco minutos, quando os relinchos ficam estridentes e incomodam na mesma proporção em que deixam seus emissores orgulhosos.

O problema é que a realidade aparece rapidinho para estapear os estúpidos e colocá-los em seus devidos lugares, por mais que não percebam de imediato – ou nunca. 

Um antigo jornalista de rádio paulista bradava na redação que a burrice é contagiosa e a ignorância, perigosa. Juntas, tornam-se poderosas aliadas de forças políticas que têm como única missão destruir direitos e facilitar a vida de cúmplices. 

Não é por outro motivo que servem de arma pra mais uma vez incitar as massas ignorantes a favor da privatização do SUS (Sistema Único de Saúde) – desde que seja para empresas e empresários amigos e apoiadores – e depredação sistemática do meio ambiente.

A final de sua contenda contra a máquina de refrigerante, Micky Dolenz desiste da briga, mas não de seus ideais. Está convencido de que tem razão e que terá sucesso em novo encontro, como um fiel fanático de seita religiosa, qualquer uma.

A luta de Dolenz, dentro de sua ingenuidade, inocência e estupidez, chega a ser comovente. Já a carreata dos bolsonaristas antivacinas não passa de algo vergonhoso e motivo de gargalhadas. Fica difícil para humoristas e palhaços concorrerem com gente tão ignorante – e tão engraçada, até certo ponto.