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A democracia sofre periodicamente ataques de todos os lados, e de onde se menos espera. A ridícula tentativa de invasão do Congresso americano nesta quarta-feira é só a face mais bizarra desse mundo em estado catatônico que vivemos, me meio a uma pandemia devastadora de covid-19 e uma guinada assustadora em direção á extrema-direita, ou seja, à total ignorância. O imbecil com chapéu de chifre no Capitólio é apenas um sintoma da cruzada dos estúpidos contra o conhecimento e a inteligência. Se desde os anos 90 os ataques à democracia são constantes, nunca foram tão fortes como a partir de 2015. As hordas de hunos pré-históricos miram a democracia representativa, que não seria mais “útil para demonstrar a vontade do povo”, ao mesmo tempo em que isso reforçaria a ideia de que a democracia pura, ou seja, a das redes sociais, com seus idiotas loquazes e histriônicos, solaparia o mundo político. O jornalista Ricardo Alexandre, nome importante da área cultural e dado a interessantes reflexões, fala com propriedade sobre o assunto e nos faz refletir sobre os perigosos caminhos que trilhamos em 2021. O texto foi publicado originalmente em seu perfil no Facebook. (Marcelo Moreira)

 

A teoria é simples: democracia representativa é um sistema de governo exercido pelo povo indiretamente, por meio de seus representantes. 

Mas o Andrew Keen, autor do livro “O Culto do Amador: Como blogs, Myspace, Youtube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores” (Zahar, 2007), levantou um ponto muito importante e um tanto desesperador.

Democracia representativa é (ou era) uma ideia, uma percepção cultural, de que numa sociedade civilizada nós ESCOLHEMOS pessoas capacitadas, preparadas, para nos representar em diveras esferas culturais e sociais.

Eu escolho (ou escolhia) as revistas, os discos, os colunistas, os políticos mais preparados. A democracia representativa começou a morrer com o surgimento da web 2.0, com a ideia de que NÓS somos os veículos, somos os produtores de conteúdo. 

Com o refinamento dos algoritmos das redes sociais, as comunidades que se formavam em torno do que nós ouvíamos e líamos agora se forma em torno de nós: das palavras-chave que nós usamos, do que nós escrevemos, dos assuntos que nós propomos.

Em outras palavras, a web 2.0 matou a ideia da democracia representativa e nos convenceu de que existe a democracia PURA, um sistema em que TODOS falamos ao mesmo tempo, com o megafone voltado pra cara dos outros, amplificados exatamente no mesmo volume.

É claro que isso é uma ilusão. Em primeiro lugar, porque embora as redes sociais trabalhem 24 horas por dia para nos convencer do contrário, ninguém tem preparo para falar sobre tudo: sobre vacinas, sobre macroeconomia, sobre religião, sobre automóveis, sobre esportes, sobre biologia e sobre a morte do Genival Lacerda. 

Mas, em segundo lugar, porque a ideia da democracia pura tende aos oligopólios. É o que vemos nas redes sociais: políticos que dominam a comunicação nas mídias sociais, que passam o dia lacrando e mostrando sua “coragem” “contra tudo o que está aí” são mais populares do que políticos que trabalham. Nos tornamos capazes de votar em pessoas que SABEMOS ser despreparadas, apenas porque elas têm as opiniões “certas” no Twitter. 

(Ser um político com mais seguidores do que o New York Times, aliás, é tudo o que os corruptos do passado sonhavam).

Em terceiro lugar, porque a “democracia pura” desvirtua os limites do espaço comum. O que é “nosso” passa a ser “meu” – de vários “eus” ao mesmo tempo. 

Como as pessoas que usam os parques públicos como se fosse o quintal de casa, eu me visto de búfalo, tiro a roupa e entro no Capitólio para decretar que não gostei do resultado das eleições. Qual o problema? O Capitólio é do povo, então é meu, estamos numa democracia, eu pago impostos (em teoria) é o governo do povo, não é?

No meu minúsculo quadrado, eu tentei recuperar a ideia de Democracia Representativa no meu trabalho. No meu podcast, eu criei um espaço para ler correspondência dos ouvintes. Porque, embora eu tenha os melhores ouvintes do mundo, alguns são mais capazes de organizar as ideias do que outros, então eu procuro as mensagens que REPRESENTEM melhor o movimento geral. 

E a própria ideia de curadoria humana, imprecisa, na hora de selecionar os 16 discos da temporada, vai contra a curadoria dos algoritmos. O Spotify responde a você. O curador sugere coisas a você baseado num projeto editorial que você escolheu para representá-lo.

E tenho evitado como num sacerdócio as polêmicas diárias das redes sociais. Vocês não imaginam o quanto precisei lutar contra minha vaidade durante a discussão sobre o aborto na Argentina. E só escrevi esse post porque tem a ver com o projeto do Discoteca Básica.

É pouco? Com certeza. É praticamente nada? Pois é. Mas é um refúgio contra a insanidade do mundo que temos visto. E a cada dia cavamos mais o fundo do poço da loucura e da distorção da civilidade.
Contem comigo pra deixar o megafone no chão, e para continuar acreditando que o melhor caminho é sempre escolher os mais preparados, os mais estudados, para nos representar.