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De volta para o passado, mas não necessariamente para as raízes – e sem o peso característico desde os primórdios. E então o blues falou mais alto em “Heavy Load Blues”, o novo disco do quarteto norte-americano Gov’t Mule.

A banda já vinha prometendo esse direcionamento desde antes do lançamento de “Revolution Come… Revolution Go”, de 2018, que é excelente e frequentou as listas de melhores do ano naquele período. A mistura equilibrada de rock, blues, country music e pitadas de reggae atingia o seu auge, colocando a banda em novo nível, ou melhor, mantendo-a em altos patamares.

Ao vivo o peso ainda ressoava e colocava o quarteto dentro do blues rock/hard rock temperado com o melhor da southern music, mas os indícios estavam todos lá, com passagens mais acústicas e versões mais tradicionais de clássicos do blues.

“Heavy Load”, a quase faixa-título, foi a primeira a ser divulgada e parecia que o Gov’t Mule mergulharia direto no delta do Mississippi: violão, voz e banquinho, com uma leve sujeira na produção e o guitarrista e vocalista Warren Haynes pagando um tributo fenomenal a Robert Johnson.

“Make It Rain”, de Tom Waits, já trouxe a banda mais para o mundo real do do blues rock verdadeiro, mas encharcado de malandragem e uma interpretação visceral. E então, qual seria o direcionamento artístico? Mais blues do delta ou mais blues moderno?

Talvez a mais surpreendente versão tenha aparecido para “Ain’t No Love in the Heart of the City” (escrita por Michael Price e Dan Walsh, sendo gravada primeiramente por Bobby “Blue” Bland) que ganhou o mundo roqueiro na versão ao vivo extraordinária do Whitesnake e a voz rouca de David Coverdale. A levada reggae enganosa adicionou um molho diferente, mas muito ousado e diferente. E Haynes e os companheiros fizeram questão de dizer que o disco não ia ter uma “cara”.

A opção por rechear o disco com várias versões também surpreendeu, já que o Gov’t Mule é uma banda autoral por excelência. Desta vez, o mergulho no blues requereu novas abordagens e um direcionamento diferente. Para começar, quase todas as canções foram registradas ao vivo no vazio no Power Station New England, conhecido estúdio de Connecticut, nos Estados Unidos. Foram raras as vezes que os quatro adotaram esse formato de registro.

“Eu não sabia se seria um álbum solo ou um álbum do Gov’t Mule”, disse Haynes em recente entrevista a uma rádio de Nova York. “Tocamos um pouco de blues tradicional no palco de vez em quando e, embora geralmente não sejam mais do que algumas músicas por show, nossa abordagem do blues é única. Não é um álbum de blues/rock – é um álbum só de blues. Queríamos que soasse sonoramente diferente de um disco normal do Gov’t Mule.”

“I Feel Like Breaking Up Somebody’s Home”, de Ann Peebles, ganhou uma versão bastante reverente, embora com sarcasmo e algum humor, enquanto que “Snatch It Back and Hold It”, de Junior Wells, soa bem fresca rejuvenescida graças a uma guitarra faiscante.

O blues mais pesado aparece em “I Asked Her For Water, She Gave Me Gasoline”, de Howlin’ Wolf, talvez a faixa que mais chegue perto de dar um tom a um álbum de blues, mas um blues difícil de classificar. É melhor deixar essa versão falar por si só.

Há outras gemas, como “Blues Before Sunrise” que abre o álbum e ilumina todo o caminho. O clássico de Champion Jack Dupreé já tevbe interpretações magníficas de John Lee Hooker, Elmore James e Eric Clapton, mas o Gov’t Mule ressignificou a canção, encharcando-a de um blues fosforescente e radiante.

Depois de lançar um disco fantástico de estúdio e outro excelente ao vivo – “Bring on the Music”, de 2019, talvez fosse o momento de um respiro, e certamente a pandemia colaborou para isso. Enquanto o fenômeno Joe Bonamassa continua pisando no acelerador, o Mule percebeu que era hora de se divertir depois de 28 anos de carreira.

E as sessões no Power Station mostram exatamente isso, quatro caras veteranos se divertindo e tocando maravilhosamente bem. A dinâmica é esplendorosa, e tudo fica mais saboroso quando eles resolvem inventar, como em um take de “Snatch It Back and Hold It”, com o tecladista Danny Louis se revezando entre a guitarra e um órgão básico.

Tudo soa redondo e perfeito. Louis e o baixista sueco Jorgen Carlsson vão completar 15 anos ao lado de Haynes e do baterista Matt Abts e é difícil encontrar um conjunto mais entrosado e solidário. O guitarrista brilha, coo sempre, mas é plausível que assim seja, como era no Spock’s Beard no temo Neal Morse e é no Flower Kings, do ótimo guitarrista e líder Roine Stolt.

É uma dinâmica segura e resistente, capaz de dar vida a disco de covers (versões de outras músicas) como se fosse um trabalho autoral. É um trabalho instigante e, de certa forma, inovador, coisa que bandas veteranas maravilhosas como Deep Purple e Saxon tentaram fazer em seus recentes discos de covers, mas não foram tão felizes.

Até mesmo “brincando” e se divertindo no estúdio o Gov’t Mule encanta, danbdo aula de como se faz blues tradicional de uma forma diferente e com muita qualidade.