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Demorou mais do que prevíamos e do que os “especialistas” esperavam, mas finalmente a desvalorização artística da música pop, que ficou grátis no começo deste século, ganhou um nome: “audição ansiosa”, um termo que já vem sendo largamente utilizado no exterior há algum tempo.

Trata-se do efeito nefasto da falta de comprometimento dos jovens e não tão jovens do século XXI com a obra de arte e consequência evidente daquilo que, nem tão coincidentemente assim, Pete Townshend, guitarrista de The Who, chamou de “era da ansiedade” – que virou título de seu romance superestimado que foi lançado este ano no Brasil.

A “audição ansiosa” também é uma consequência da perda total de valor agregado da música como bem cultural. As pessoas se importam cada vez menos com o que ouvem e se interessam cada vez menos pelos artistas e pelas canções em si.

Como a música ficou grátis e fácil de acessar/obter, o interesse por seu valor cultural diminuiu drasticamente. E era inevitável que tal circunstância afetasse diretamente a indústria da música e a maneira como consumimos música e bens culturais na terceira década do século XXI.

Se somarmos isso á chamada alta velocidade da vida moderna”, encharcada de ansiedade, impaciência e intolerância, o que temos é um mercado musical anda mais degradado do que aquele que foi devastado pelo MP3 e pelos downloads ilegais.

O mercado demorou, mas se adaptou a essa degradação industrial, cultura e até moral; a geração Tik Tok não suporta mais ouvir músicas de mais de dois minutos; quando muito, preferem “teasers” de um minuto.

Pesquisas de empresas que gerenciam plataformas de streaming mostram que muito raramente alguém fica ouvindo uma canção além dos 150 segundos (dois minutos e meio). Que tipo de gente estamos formando para o resto deste século?

Então quer dizer que as músicas não podem ter mais do que dois minutos? E os livros? Não terão mais do que 50 ou 100 páginas sob o risco de serem ignorados? Será que a bolsonarização – o orgulho de ser ignorante e espalhar a ignorância – vai empestear de forma inexorável nosso mundo e nossas vidas?

A constatação deste triste caminho pode ser lida em interessante reportagem do jornalista Julio Maria, em O Estado de S. Paulo – leia aqui ou então aqui.

A maior parte dos músicos ainda não sabe como lidar com a depredação de seu trabalho e de sua arte. São vários os modelos que tentam implantar para remunerar de alguma forma o que produzem, alguns com mais ou menos sucesso, mas ainda sem um norte específico ou um modelo a ser seguido. Vende seus catálogos ou dividir lucros de shows e turnês com o que sobrou da indústria fonográfica são caminhos, mas longe de serem satisfatórios.

O fato é que ainda é nebuloso o mercado e quase ninguém consegue/conseguiu lidar com a perda de valor agregado da música e com as mudanças de hábitos musicais da geração de ouvintes de 2021, que inclui jovens e nem tão jovens sugados pela “vida louca e veloz” do século XXI.

Alguns bem que tentam, como os rappers e nomes fortes do hip hop e R&B norte-americanos, que entenderam a necessidade de rapidez e seletividade do ouvinte que não tolera mais “canções longas”. Os músicos, compositores e produtores precisam ser rápidos e diretos, ainda que, com isso, desvalorizem seus próprios trabalhos, encolhendo suas possibilidades e desidratando suas capacidades.

O texto de Julio Maria mostra bem isso com depoimentos de Lulu Santos e Caetano Veloso, que já reorganizam e reorientam suas produções para a nova realidade. Lulu até conta que editou uma canção retirando-lhe mais de um minuto, e que achou o resultado “melhor do que o anterior”.

Atender a reivindicações de mercado e impor restrições à criação com evidentes resultados nefastos ao trabalho criativo é um enorme retrocesso artístico, ao menos por enquanto.

Transformar o mercado pop em mero depositário de jingles e teasers pode atender, momentaneamente, um mercado pouco interessado em qualidade e ousadia, mas o preço da desidratação deliberada pode ser alto.

Não se trata de detonar os novos hábitos e nem de decretar o fim da civilização diante da aparente desvalorização do processo criativo e da música em si.

Eu considero um retrocesso e perdas irreparáveis, mas outras pessoas que lidam com arte e entretenimento não tão céticas ou catastrofistas. Alguns enxergam valor cultural e artístico mesmo em um mercado restrito e compacto. Há quem diga ainda que e muito cedo para estabelecer parâmetros dentro da geração que mergulha na audição ansiosa.

Seja como for, os desafios só aumentam para quem trabalha cm música, cultura e arte. Ainda trabalhamos com parâmetros antigos enquanto a audiência/consumidor indica estar indo para outra direção. Quem está correto? Cabeças mais antigas têm elementos para falar em retrocesso?

Se perguntarmos a John Petrucci, guitarrista do Dream Theater, a resposta certamente será sim, a julgar pela faixa-título do álbum mais recente da banda, “A View to the Top of the World”, com seus 21 minutos de duração. É uma música maravilhosa, com suas variações e suítes de extremo bom gosto.

Bruce Dickinson, vocalista do Iron Maiden, também discordará. No álbum “The Book of Souls”, da banda, lançado em 2015, a última música se chama “Empire of the Clouds”, um épico de 18 minutos que inclui quarteto de cordas e longas passagens, lindas, de piano, como se fosse uma peça erudita.

Contando a história de um acidente de dirigível (zepelim) ocorrido na Inglaterra no começo do século XX, deixando dezenas de mortos, a música, de autoria do cantor, foi indicada a vários prêmios na Europa e sua letra servirá de base para roteiros de uma peça de teatro e para um filme.

São mundos distintos e situações diversas, é claro, mas é uma forma, mesmo alegórica, de mostrar que um “regramento” de mercado a reduzir o tempo das músicas pode ser um grande equívoco.

Assim como foi possível superar a ditadura dos compactos/singles nos anos 50 e 60, com a chegada dos LPs e dos álbuns duplos ou triplos, em algum momento teremos de ultrapassar a barreira da audição ansiosa e, de alguma forma (mesmo que de forma pretensiosa) reeducar os consumidores e oferecer coisas melhores e mais instigantes, ou mesmo desafiadoras.

Quando eu falo de retrocesso eu me refiro a um estado de coisas que julgava estar no passado. Dentro do rock, quando víamos reedições em CD, DVD ou mesmo em formatos digitais ainda sendo consumidor vorazmente tendo em mente a importância da obra artística, imaginávamos um monte de possibilidades.

Claro que sempre haveria espaço para a velha canção básica orientada para as emissoras de rádio, mas sempre acreditamos que o conceito de “álbum”, no sentido de fazer parte de um grupo ou “conceito”, estava estabelecido a ponto de não precisar se sujeitar a restrições de mercado.

Não foi assim que nos sentimos quando ouvimos “Blackstar”, o último disco de David Bowie? Imagine quase todas as canções mágicas desse disco orientadas para o conceito de audição ansiosa. O quanto a obra perderia? O quanto nós perderíamos?

Os novos hábitos musicais decididamente não são favoráveis a um conceito artístico em que a liberdade predomine (por mais que isso soe ultrapassado e fora de moda). Sempre queremos mais e oferecer mais – e que nos ofereçam mais. Não é o que está acontecendo desde meados da década retrasada.

Estamos perdendo o comprometimento com a música e aceitando que a “vida loka” do século XXI nos empurre para um lado escuro da existência. Estamos perdendo a essência da música e de sua importância.

A audição ansiosa não vai nos afastar da luta pela preservação de apreciar uma canção em todo o seu esplendor independentemente de sua duração ou da “paciência” dos “novos consumidores”.

Comédias ou filmes de ação com 90 minutos sempre terão seu mercado, mas sempre precisaremos das obras magníficas, longas e densas, de Ingmar Bergman e de Stanley Kubrick. Se a audiência ansiosa predominar, teremos cada vez menos oportunidades de apreciar peças eruditas e sinfonias – e as grandes obras do rock progressivo que tanto empurraram o rock e a arte à frente.