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Malvada toca no Woodstock Bar, em São Bernardo (FOTO: MARCELO MOREIRA)

O brasileiro desaprendeu a gostar de rock, e isso está contaminando toda a cena. Eu estou contaminado, em todos os sentidos.

As declarações são de um guitarrista europeu radicado há muitos anos em São Paulo – e apaixonado pela cidade e pelo país. Publicitário e músico, atua na noite paulistana tocando rock e blues com amigos e bandas diversas, e foi mais uma vítima da covi-19, embora quase assintomático.

Para ele, a pandemia não foi só um retrocesso em todos os sentidos: mudou para pior o comportamento de muita gente em relação à arte e à música. Algo impensável há poucos anos em Amsterdã, Berlim, Munique, Roma ou Madri, a praga dos “covers”, bandas que tocam versões de clássicos do rock, ou de qualquer outro gênero, estão predominando, ao menos momentaneamente, neste período de retomada da vida após as piores fases da covid-19 – ok, as terceiras e quartas ondas estão vindo forte, mas tenhamos esperanças.

“A ansiedade é tão grande para sair de casa e socializar que as pessoas não ligam mais para o que está tocando”, disse o guitarrista, que pediu para não ser identificado. “O som autoral, que era uma exigência na Europa, está agora tendo de dividir espaço com os covers. Isso era uma heresia tempos atrás. A galera quer menos trabalho, não quer ter trabalho de pensar, de fazer esforço. Está apostando no certo e conhecido, como ocorre no Brasil há anos. Isso mata a arte.”

A impressão de que a pandemia acentuou uma tendência há muito solidificada nas capitais brasileiras em que ainda há rock ao vivo nos bares é total: as bandas covers voltaram com tudo, e o classic rock está mais forte do que nunca. Bom ou ruim?

Depende do ponto de vista. Se analisarmos a questão artística, nada mudou ao que predomina nos últimos 15 anos em cidades como São Paulo, Belo Horizonte ou Rio de Janeiro: os covers são dominantes e cada vez mais dominantes, ao passo que os espaços que ainda permitem sons autorais são cada vez menos numerosos.

Do ponto de vista do comércio e negócios, são as bandas covers que seguram algum público nos bares que insistem no tema roqueiro – só na Grande São Paulo e capital paulista surgiram cinco novos espaços bacanas desde novembro de 2020.

“Houve ma progressiva mudança de perfil de público nos últimos dez anos, pelo menos”, comenta um conhecido dono de restaurante no ABC paulista que já fez produção de shows underground, que também pede o anonimato. “Ou você faz eventos pontuais, tipo minifestivais, com bandas mais ou menos conhecidas, ou então tem de colocar bandas covers para tocar.”

Segundo ele, é uma exigência de público. “É um efeito perverso do ‘toca Raul’. É um pessoal menos exigente, menos disposto a ser surpreendido e que não liga de ouvir ‘Smoke on the Water’ [Deep Purple] ou ‘Stairway to Heaven’ [Led Zeppelin] toda noite. Quando reabri quando a pandemia amainou, isso ficou ainda pior. Chamei uma banda prestigiada de hard rock para tocar no meu bar e vendi 60 ingressos no total. três semanas depois, um grupo cover do AC/DC lotou a casa com 400 pessoas.”

Rock virou coisa de gente velha e saudosista? A julgar por uma apresentação recente de uma banda em ascensão no mercado, sim. A banda paulista Malvada lançou em 2021 seu primeiro CD, “A Noite Vai Ferver”, com oito músicas. Autêntica banda de bar e de estrada, toca ao vivo sempre que pode, e onde der, o que é fantástico.

O repertório próprio, por enquanto, é limitado às oito canções do álbum. No show de 90 minutos, complementam o repertório com clássicos do rock internacional e temas nacionais nem tão óbvios. É uma necessidade prática, evidentemente, mas a diferença de reação do público que as assiste e que não as conhece é grande. Urram com os covers, e parece não se interessar pelas canções autorais. Pode ser apenas uma impressão, mas foi isso que aconteceu recentemente em dois shows da banda feminina em duas casas no ABC paulista.

“Neste momento, o importante é tocar e cativar um público que está voltando aos shows e quer bom rock and roll”, diz Bruna Tsuruda, a empolgada guitarrista da Malvada. “Nunca foi fácil fazer rock autoral no Brasil, é uma batalha para bandas novas e nem tão novas e acho que o resultado tem sido bom quando tocamos as nossas músicas.”

Ela diz que apenas uma vez, em quase dois anos de banda, houve um certo atrito em relação ao repertório. “O dono de um lugar uma vez reclamou após o show com nosso produtor de estarmos tocando muita coisa ‘desconhecida’. O curioso é que ele nos contratou justamente por ser uma banda autoral.”

A compreensão em relação a isso, no entanto, está longe de ser consenso. Recentemente, um cantor de banda de rock mais acessível de São Paulo colocou nas redes sociais um desrespeito a que foi submetido. “Tínhamos três entradas para fazer em um bar, em um espaço de três horas. Ao fim da primeira, o dono do lugar nos deu um ‘ultimato’: não poderíamos tocar mais nenhuma autoral, só covers. Recolhemos os instrumentos e fomos embora. Cinco clientes antigos do local tinham reclamado. Pelo menos fomos pagos integralmente.”

O conceito de diversão ligado ao rock and roll na noite das cidades grandes mudou, é perceptível, e mesmo em cidades do interior de São Paulo, celeiro forte de bandas de rock, os covers predominam, como em Campinas, Sorocaba, ribeirão Pereto e São José do Rio Preto. Nas poucas casas que ainda abrem espaço na agenda para o autoral, é sempre em dias “alternativos”, como quarta ou quinta-feitas ou noite de domingo.

“Trouxe uma badalada banda brasileira de hard rock que estava lançando seu CD novo, e vendi 250 ingressos na sexta, 300 no sábado. No domingo, dia tradicionalmente ruim, coloquei uma das melhores bandas cover do U2 do país e havia 600 pessoas. A mesma banda voltou no sábado seguinte e os ingressos acabaram em três horas na quinta que antecedeu o show. Então é assim que vai ser”, disse ao Combate Rock um dono de casa de show de Rio Preto em 2015.

A situação se agravou de tal forma que quatro anos, pouco antes da pandemia, ele tinha abolido as bandas autorais de rock de sua programação. Desde a reabertura, no final de 2020, apenas duas banda de rock alternativo autorais fizeram shows ali, em sempre no domingo, dia considerado “mais fraco”.

“Isso já era esperado, ao menos no período de incerteza em que vivemos. As bandas covers, bem ou mal, seriam a salvação”, diz Alberto Dias, economista e consultor financeiro que trabalha no setor de gastronomia. “É um momento de recuperação. Para quem acha que música ao vivo ainda atrai público, a saída é apelar para o conhecido, bandas que toquem classic rock ou rock nacional dos anos 80. Dá para dizer que é um pessoal menos exigente que está frequentando esses bares? Prefiro dizer que é um público que está em busca de ‘liberdade’ e diversão sem tanto compromisso. Quer socializar e a música ao está em segundo plano. Se tem música ao vivo, preferem ouvir Beatles e Paralamas do que Frank Zappa ou um rock desconhecido de uma banda qualquer.”

Mas não deixa de ser um retrocesso, certo? “Na opinião de quem?”, rebate Dias. “Quando se está lutando para manter negócios em pé, essa visão cai por terra, ou não faz sentido. As bandas covers sempre existiram desde os anos 80, então essa preocupação com o autoral soa como reclamação de quem não consegue emplacar o próprio trabalho nos bares ou em qualquer lugar.”

Ele lembra que era difícil encontrar lugares para ouvir som próprio na badalada rua 13 de Maio, no Bexiga (centro de São Paulo) ou na rua dos Pinheiros (zona oeste), todas recheada de bares. No famoso Café Piu Piu, que existe atre hoje no Bexiga, bandas de jazz, blues e de rock autorais no máximo conseguiam uma quinta-feira nos anos 80.

“É uma coisa cíclica e não era muito diferente 30 anos atrás. Melhorou com o passar dos anos? Talvez”, reflete Dias. “Ok, muitas bandas bacanas e que fizeram sucesso podem ter surgido porque havia mais casas dispostas a apostar em artistas iniciantes. Mas o mudou mudou de novo. Reconheço que ficou difícil para os artistas novos encontrar espaços e eventos legais para divulgar seus trabalhos nos anos 2010, e acho que vai ficar mais difícil ainda no futuro próximo, mas a culpa não é dos bares e restaurantes. Isso muda se a banda levar 200 pessoas a um show, e depois a todos os shows. Caso contrário, sempre perderá espaço para o cover do Bon Jovi e do Guns N’Roses.”

Claro que é uma questão a se lamentar, mas, antes de tudo, é uma constatação: se já era difícil antes para artistas autorais iniciantes e não tão iniciantes encontrar lugares para tocar antes da pandemia, agora ficou pior. O público ficou ainda mais conservador e menos tolerante a novidades.

Muitos bons festivais underground que incentivam a música autoral, de todos os gêneros, ou adiaram suas edições ou simplesmente sumiram por conta da falta de patrocínio. As lives e festivais online não supriram essa carência e não conseguem render o mínimo necessário para a manutenção de uma carreira.

Há quem diga que a vida zeraria, em muitos casos, quando a pandemia acabasse. Então, que assim seja e que voltemos à estaca zero para (re)conquistar o público perdido do rock autoral e que criemos uma nova identidade artística, em todos os sentidos, no Brasil. Ainda dá para evitar que o rock se torne cada vez mais uma arte/estilo de vida de nichos.