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Quando a cerveja é mais importante do que a educação de nossos filhos, quando a praia é mais atrativa do que a preservação da saúde coletiva e quando as pessoas acham normal acusar uma criança de dez anos grávida de assassina por querer abortar após um estupro, é sinal de que falhamos totalmente.

A família miliciana que empesteia o o governo, em meio ao desespero e à incompetência, escancarou as portas para todo tipo de fundamentalismo político e religioso e decidiu que armas devem ter isenção de impostos, enquanto que livros têm de ser ainda mais taxados.

As mais recentes ameaças à realização da eleição “se não houver auditagem ou auditoria externa” escancaram o golpe em andamento, mas esse tipo de coisa parece não incomodar parte expressiva da população brasileira, que já revelou, em pesquisas recentes, preocupante indiferença em relação à preservação da democracia.

Não será fácil conviver com o bolsomerdismo impregnado em nossa sociedade, cada vez mais empesteada por ideias fascistas e autoritárias, onde o preconceito e o racismo avançam com velocidade e a censura a obras de arte ganha cada vez mais adeptos e se fortalece com a mesma indiferença diante dos ataques medievais do governo e de seitas religiosas nojentas.

Diante da maior crise sanitária da história da humanidade, ministros incapazes e insensíveis parecem viver em outro planeta, defendendo cortes nos orçamentos da saúde e da educação – quando não secretos – para agradar militares omissos, ociosos e preguiçosos.
Com o mundo pegando fogo e a sociedade se deteriorando em todos os níveis, vemos artistas vomitando a favor de políticas que depredam direitos e que sabotam auxílios emergenciais para profissionais da cultura e do entretenimento.

O mesmo artista conservador que clama por ajuda e reivindica o mais do que necessário auxílio apoia um governo nefasto e com tendência fascista, o mesmo que sabota a concessão do dinheiro emergencial para a classe artística, que só verá, se é que verá, a verba em 2021

Distorção total

O que impede essa camada da população de enxergar os perigos e as armadilhas que a extrema direita espalha para aparelhar e contaminar a sociedade com suas ideias medievais?

Como é possível que gente que vive de arte, de cultura, e que deveria privilegiar a informação de qualidade, endosse a inquisição contra uma criança que precisa desesperadamente de auxílio para abortar uma gravidez resultado de abuso?

Em que momento essa gente abandonou os preceitos da humanidade e da solidariedade em favor de um fundamentalismo desprovido de inteligência e decência?

Como pode músico que se diz libertário e roqueiro abraçar causas indefensáveis de cunho religioso e ideológico dos mais atrasados que, em última instância, lhe prejudicará pessoalmente, seja com o fim da democracia, com a instauração da censura ou mesmo com perseguição política meramente por conta de sua atividade profissional?

A cegueira ideológica aliada à profunda indigência intelectual que contaminou o meio musical brasileiro, especificamente, produz cenas lamentáveis e declarações deploráveis, que vão da defesa pura e simples da censura a quem é contra Jair Bolsonaro, o presidente nefasto, até a proposição de criar critérios políticos para a concessão dos benefícios emergenciais propostos pelas Leis Aldyr Blanc e Paulo Gustavo.

Em que ponto da história essa gente foi contaminada pela burrice ou sofreu deformação irreversível de caráter?

Cultura x cultura

Houve músico de certo prestígio que não viu nada de errado na proposta de taxar os livros, que é coisa de “elite”, como dizem os integrantes do Ministério da Economia. “Antes os livros do que os instrumentos musicais”, brincou o tal cidadão, que apagou logo depois o comentário esdrúxulo – como se instrumentos musicais, com preços inacessíveis para a maioria da população, não fossem coisa de “elite” e, portanto, passíveis de aumento de impostos em uma segunda etapa.

Essa gente jamais vai admitir que votou em um governo incapaz, incompetente, covarde, corrupto e mentiroso, por mais que alguns tentem se distanciar de certos extremismos e fundamentalismos.

Entretanto, escorregam sempre quando tentam se desculpar e relativizar reproduzindo o mesmo rol de mentiras e desonestidades intelectuais, como se, dentro de sua deformação de caráter, as justificativas de apoiar um conservadorismo predatório e lesivo a qualquer interesse social e nacional pudessem compensar eventuais danos à vida de milhões. A gestão catastrófica da pandemia é o maior exemplo de como o bolsonarismo é destrutivo.

A eleição de 2018 afrontou o bom senso, mas evidenciou de forma clara que a polarização e a divisão social profunda só beneficiam a extrema direita, a mesma que mentiu descaradamente em suas propostas e que segue a passos firmes na imposição de uma agenda medieval de costumes e práticas políticas corruptas com base religiosa e no estelionato eleitoral.

A divisão social ganha ares de guerra civil no momento em que a desumanidade e a perversidade entram em campo. Só isso explica o “resgate” de ideias arcaicas e posturas antidemocráticas
em pleno século XXI, com flertes diários com o totalitarismo e com o estelionato religioso praticado por muitos políticos e pastores.

Assim como a imensa maioria da população alemã abraçou o nazismo por medo, mas também por pragmatismo e pela ojeriza a qualquer tipo de democracia, no Brasil atual fincaram raízes profundas a desfaçatez e o cinismo de imensa parcela da sociedade. 
Não nos enganemos: essa parcela grande que sempre cultivou o ódio, o preconceito e o racismo. Isso sempre fez parte de nossa vida cotidiana, mas parecia estar perdendo terreno nos últimos anos. Não é por acaso a explosão de inúmeros eventos com racismo nos últimos tempos no futebol e no comércio das grandes cidades.

Mundo medieval

Bolsonaro nos fez o favor de explicitar como somos ignorantes e medievais. Adormecidas, a perversidade e a desumanidade se tornaram a base de uma ideologia canhestra baseada no ódio, no preconceito e no moralismo mais abjeto com base religiosa.

Somos uma sociedade perversa e intolerante, que é descrente na igualdade e que abraça sem pudor o capitalismo predatório fundado no oportunismo sórdido do lema “o que eu ganho com isso?”.

Não há chance de conciliação no Brasil no médio prazo. A sociedade cindida vai continuar erguendo barreiras enquanto a intolerância extremista e fundamentalista de direita mantiver pelo menos um dos pés no poder.

E perceber que pate expressiva da classe artística compactua com esse clima beligerante e apoia um programa de destruição de direitos, que certamente se voltará contra eles próprios, é apenas o sintoma mais explícito de que intolerância, mais do que um instrumento ideológico, é uma política de Estado.

E então percebemos que a perversidade e a desumanidade se tornaram elementos indispensáveis para erodir os fundamentos da sociedade democrática e depredar reputações e biografias.

Esse clima sombrio explica e justifica a existência de um dossiê antifascista produzido dentro do Ministério da Justiça e em Assembleias Legislativas. E então chega o momento em que devemos tomar cuidado ao dobrar cada esquina ao sair de casa. Perdeu quem apostou que esse dia nunca chegaria.