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 Marcelo Moreira



Polícia violenta e turbas ensandecidas não são produtos exclusivos da brasilidade. A dificuldade no controle de tumultos é generalizada – basta ver como as polícias estaduais fracassaram em conter os excessos nas manifestações da morte de George Floyd, nos Estados Unidos.

Também foi difícil ver policiais gregos, poloneses, italianos e de várias outras nacionalidades espancando e ate matando manifestantes em cúpulas do G-8, o grupo dos países mais ricos.

Parece que a dose de despreparo é o mesmo, mas o grau de violência é bem maior na América do Sul. Forças de repressão de Brasil, Argentina e Chile expõem e extravasam uma dose inacreditável de raiva, ódio e também muito medo.

Quando frequentava com mais assiduidade estádios de futebol, meu pai sempre alertava: nunca brigue com policiais; você sempre vai perder, não interessa a a disparidade de forças.

Mais do que falta de treinamento, os policiais escalados para eventos ou manifestações com muita gente, os policiais e forças de contenção exibem medo e pavor de multidões. Sabem que o treinamento foi insuficiente e, geralmente, estão em número bem aquém do que deveriam para atuar em eventuais distúrbios.

A tensão é evidente e é uma forma de driblar o medo que o PM vê diante de 50 mi, 60 mil, 100 pessoas em um clássico no estádio do Morumbi, como ocorria antigamente. É muita gente para um efetivo deliberadamente pequeno. 

Permanentemente tensos e com medo, os policiais exibem todo o seu descontrole e falta de treinamento ao menos sinal de problema. Sobra apenas a violência como método de dissuasão, segundo me contou um tenente PM em 2000, após o segundo jogo da final da Libertadores, no Morumbi, entre Palmeiras e Boca Juniors, da Argentina.

“Não vou entrar no mérito do treinamento. O que vemos é um estádio com 100 mil torcedores e muita e gente bêbada.,encrenqueira, que quer entrar sem pagar, que vem pra roubar e causar tumulto. O número de policiais nunca é suficiente. Quando sai briga entre torcidas ou quando somos atacados, só resta jogar a cavalaria e dispersar no bastão e, se for preciso, balas de borracha e bombas de efeito moral”, disse o suboficial.

A lógica vale para todas as forças de repressão, de batalhões contra torcedores, contra manifestantes e de seguranças de casas noturnas de shows contra espectadores alucinados por músicas maravilhosas e, eventualmente, pesadas e ensandecidas.

“É um ambiente hostil, mesmo em casa de shows. É tensão demais porque não pode haver vacilo. Um segundo de distração e tem uma briga atrás de você, briga feia, tem gente tentando pular no palco pra fazer sei lá o que… O treinamento até ajuda em algumas circunstâncias, mas em caso de distúrbio e agressão direta não dá para aliviar”, disse o mesmo PM.

Enquanto a PM vê esses ambientes como extremamente hostis, sempre considerando que todos os que estão se divertindo e se manifestando são inimigos, os apreciadores de shows e torcedores de futebol fazem questão de mostrar que estão se divertindo bastante, com toda a série de provocações aos policiais, coisa que sempre fez parte da vida. E então aflora raiva. Medo e raiva formam um combustível perigoso e que deixa bastante vítimas.

É assim nas casas noturnas, onde não são poucas as ocorrências de seguranças espancando alguns frequentadores, em bairros nobres, quando reclamam da conta. A raiva e o medo se juntam para espancar o mais afoito que tenta segurar o pé do vocalista perto da grade ou tenta roubar o equipamento de algum fotógrafo. 

E onde entra o racismo nesta conta? No estádio de futebol e nos bailes funk da periferia. Medo, raiva e sadismo misturados resultaram na tragédia de Paraisópolis, no ano passado, com dez mortos pisoteados em um beco. Para os PMs, todo mundo ali era bandido, ou seja, o inimigo. E a maioria era de pessoas negras.

Nos cada vez mais frequentes embates entre polícia e torcedores organizados, a PM nunca leva a pior, mesmo em menor número. Não hesitam em bater para machucar e atirar balas de borracha pra ferir. Na linha de frente dos confrontos, estão sempre os negros, cansados de maus tratos pelo aparato repressivo, que os vigia muito mais do que aos brancos que vão de numeradas e camarotes.

Qualquer indício de protesto contra a derrota do time logo é dissolvida a pancadas. Sem discussão e sem observar métodos razoáveis de suposto enfrentamento com a massa enfurecida que, ao menos antes da intervenção policial, não tinha a intenção de depredar e vandalizar. E com isso sobram bomas, pedras e cadeiradas para as famílias que nada têm a ver com a guerra.

O racismo também aparece nos shows de rock grandes, cuja predominância de brancos endinheirados é notória. Sobra pancada é para trabalhadores ambulantes e donos de barracas de sanduíches, teoricamente atuando de forma ilegal – e, em sua maioria negros. 

A frustração e o ódio descem pesadamente contra os mais desfavorecidos, desempregados que moram nas periferias e aproveitam para vender três latinhas de cerveja por R$ 10 ou R$ 15 para aliviar a conta de luz ou o aluguel de cômodos apertados.

Os cassetetes e as balas de borracha, aparentemente, não discriminam cabeças e lombos. A fartura de porrada é grande, e os resultados podem ser medidos ao final da batalha: o sangue jorra só de um lado, o dos mais pobres e negros, mais vulneráveis e quase nada protegidos pelas leis e pelo Estado. 

São as vítimas preferenciais desse mesmo Estado direitista com inspiração racista e fascista, em todas as suas esferas. O mesmo Estado que diz pregar a lei, a ordem e a inviolabilidade do patrimônio, como vomitou o presidente nefasto desta nação.

As agressões de três policiais negros na periferia de Santo André (ABC Paulista) nesta semana comprovou a tese de que os PMs se acham invencíveis, inimputáveis e fora do alcance das leis. 

Mesmo com a profusão de casos de violência policial, inclusive com assassinatos, essa gente se sente empoderada e não liga pra eventuais filmagens. Os negros das periferias são carnes baratas no mercado e muito raramente há consequências penais e judiciais.

No caso de Santo André, depois que a tensão e a adrenalina estão “lá em cima” vagando por “território inimigo”, o “radar” detecta vítimas indefesas e inocentes para servir de exercício de sadismo e tortura, om a raiva aflorando – raia de pobre, de preto e de gente que ousa tentar viver e ser um pouco feliz.

Vidas negras importam, mesmo a carne negra sendo a mais barata do mercado. As batalhas se sucedem, e a guerra parece que vai durar para a eternidade.