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Elza Soares (FOTO: DIVULGAÇÃO)

A importância de um artista, principalmente na música, é a sua capacidade de dizer a sua verdade de forma tão intensa e convincente que torna todo o resto supérfluo.

Essa máxima, aparentemente, não tem autor e foi disseminada às pencas durante décadas para qualificar artistas tão devastadores como Billie Holiday, Otis Redding, Jimi Hendrix, Aretha Franklin, B. B. King, Buddy Guy, Muddy Waters e muitos outros – coincidentemente, todos negros.

E foi dessa forma que Elza Soares, que morreu aos 91 anos nesta semana, foi descrita por muita gente que a homenageou, mas principalmente por um guitarrista paulistano de alta sensibilidade e muito espiritualizado.

Nas redes sociais, Edu Gomes não economizou no sentimento e escreveu que a “importância da cantora é tão grande por conta da verdade intensa com que viveu e cantou sua dores e sua vida difícil”.

Não há como discordar. Mesmo nos momentos mais alegres, cantando sambas de alto astral, Elza Soares imprimia de tal forma a sua marca – e seus dramas – que era impossível ficar indiferente.

É isso que ela transmitia, já  octogenária, quando cantava “A Carne” – “a carne preta é a mais barata do mercado”. É a cara de Elza, de sua arte e de sua resistência.

Resistir foi um verbo indissociável de sua arte, assim como a extrema qualidade de suas interpretações. Ela veio do “planeta fome”, uma mulher que emergiu da extrema pobreza e da violência sexual para trazer definitivamente o morro para o asfalto.

À violência física, sexual, econômica e social somou-se à política, com a perseguição da ditadura militar brasileira que metralhou a sua casa, obrigando-a, momentaneamente, a se exilar na Itália com o então marido, o jogador de futebol Garrincha em fim de carreira.

Os anos 2000 foram um pouco mais suaves, com um reconhecimento tardio, mas pleno, de seu talento e importância socioartística. Requisitada e reverenciada, conseguiu manter a carreira em alta e um certo conforto financeiro que nunca teve, o que só acentuou a sua verve polêmica e contestadora.

Para as gerações mais novas, “A Carne” é o ápice de uma artista que resistiu e colocou o povo na linha de frente em sua arte. 

Em sua voz, a canção reverbera e transcende o meio musical: explode na cara de todos os ouvintes e coloca Elza Soares como a voz estrondosa de protesto e de empoderamento – mulher, preta, pobre e consciente das injustiças e das muitas guerras diárias.

A sua verdade “verdadeira” sempre veio da alma, o que torna a sua arte tão impressionante. Assim como nos lamentos da blueseira Big Mama Thornton ou nos disparos certeiros de Billie Holiday, era possível sentir a alma (e na alma) a verdade exalada por Elza Soares. Uma verdade profunda e dilacerante.