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Um mundo diferente, onda a vida e a morte travam uma dança e um jogo, com resultados imprevisíveis e intensos. Com sutileza, delicadeza e inteligência, “Inter Mundos” remodela algumas maneiras de se fazer música no rock brasileiro e retoma uma linha de trabalho que parecia ter submergido com o fim da banda brasiliense Dark Avenger, ocorrido com a morte do cantor Mario Linhares, em 2017.

“Inter Mundos” é um grande épico trazido à luz pela banda Caravellus, um os nomes importantes do metal progressivo brasileiro – tão importante que causa muita estranheza que tenha lançado tão poucos trabalhos em sua trajetória de mais de 15 anos.

A referência ao Dark Avenger não é aleatória, já que o guitarrista Glauber Oliveira foi um próximo colaborador de Linhares, de quem era muito amigo. 

Caravellus e Dark Avenger têm muitas semelhanças, mas a banda de Oliveira fez uma opção bastante sensata em se aprofundar na cultura brasileira e explorar temas mais complexos e introspectivos. É uma bem-vinda retomada.

 Com uma atenção esmerada aos detalhes da história e dos arranjos vocais e instrumentais, “Inter Mundos” transita em ambientes diferentes com a mesma dose de competência e inteligência. Nada fica fora do lugar.

As letras fazem com que o narrador encontre um posicionamento ideal condutor da história e consegue interpretar alguns dos personagens distintos com competência, escapando das armadilhas constantes que tais obras oferecem. 

Em um surto de criatividade em tempos de pandemia mundial, muitas obras conceituais de bandas brasileiras chegaram ao mercado quase que ao mesmo tempo, indo desde a verve política da Dorsal Atlântica em “Pandemia” até os tradicionais contos fantásticos de bandas de power metal.

A banda Caravellus, com maestria, preferiu um caminho próprio, baseado em uma história densa repleta de menções filosóficas e uma abordagem bem existencialista.

Caravellus (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Magia e realidade

Em um rápido resumo, “Inter Mundos” é um álbum conceitual que conta uma história de amor entre os personagens Arteiro e Aurora. A história se passa no Nordeste do Brasil, em uma vila sem nome, sem localização precisa. 

É uma espécie de lugar mítico onde a trama traz à tona questões universais, como conflito de classes, corrupção, intolerância religiosa, vida e morte – tudo a ver com a realidade gritante de um Brasil ainda ancorado em trevas que parecem eternas. Todo o enredo está mergulhado em uma atmosfera metafísica, onde realidade e fantasia se fundem.

“Cada música de ‘Inter Mundos’ conta uma parte da história. O Arteiro encontra a Morte na música ‘Memento Mori'”, diz um empolgado Glauber Oliveira, um dos nomes estrelados da guitarra pesada brasileira. 

Na trama, a Morte aparece para Arteiro sem foice ou capuz, de acordo com o musico. “Ela chega esmagando ossos, no forma de onça, chamada Caetana, e seus três gaviões: Sombrifogo, Caintura e Malermato. Essa personificação da Morte foi criada pelo fantástico escritor brasileiro Ariano Suassuna e a inserimos como homenagem a esse grande escritor brasileiro. Musicalmente, ‘Memento Mori’, o primeiro single, é a música mais doom metal na discografia de Caravellus. É uma música empoderadora, sombria e com ritmos regionais.”
diante de uma obra com tamanha qualidade, fica difícil estabelecer qual parte se destaca mais. No entanto, não há como não mencionar “Memento Mori” justamente pela fusão bem calibrada de metal com ritmos regionais. Claro que não foram o pioneiros a entrar nesse campo, mas quando a banda o faz com competência e qualidade, não há como não admirar.

“Inter Mundos” é uma obra complexa e demorou para ser finalizada por uma banda afiadíssima –  Glauber Oliveira (guitarra), Daniel Felix (teclados), Leandro Caçoilo (vocal, Viper e Hardshine), Emerson Dácio (baixo) e Rafal Ferreira (bateria). 

Encontros

O encontro com a cultura nordestina foi a celebração de um trabalho de muita pesquisa e elaboração de arranjos técnicos que foram desafiadores, de acordo com Oliveira. “Cada detalhe e cada música foram pensados em função do conceito da história. Não é uma simples trilha sonora, tem tudo a ver com um musical e mesmo uma ópera.”

 “Memento Mori” foi bem escolhida como single inicial porque define a obra, de certa forma. Estabelece os termos e indica o caminho a seguir. 
O trabalho de guitarras é soberbo e a execução mostra como é possível casar imagem e som misturando elementos distintos e antagônicos. A participação da cantora Daniela Serafim, da banda Invisible Control, é cirúrgica e impulsionou ainda mais a obra.

No restante do disco, temos uma coleção de temas que passeiam com desenvoltura por jazz, blues, maracatu e mais uma miríade de ritmos, como em “Knights of the Sun” e “Panis et Circensis”, onde as guitarras dialogam com sensibilidade com os arranjos dramáticos da história.

Outros momentos épicos, como “Triumvirate”, resgatam o metal mais tradicional, mas ainda mantendo o tom dramático, atingindo um ápice na excelente “Incantation”, passando por “Memento Mori” e engatando uma sequência extraordinária – “Insurrection”, “Inter Mundos”, “Ouroboros” e “So Near, So Far”, em que as questões filosóficas se entrelaçam com o existencialismo e questionamentos a respeito de nossas vidas e o desenho do futuro, algm futuro, qualquer futuro.

Inspirado ou não na convivência com o amigo Mario Linhares, Glauber Oliveira entra para um time seleto de compositores brasileiros que oferecem um algo a mais em termos estilísticos, como Rafael Bittencourt (guitarrista d Angra) e Heleno Vale (baterista e mentor do projeto Soulspell), um grupo seleto do qual Linhares era destaque.

Enquanto os concorrentes apostam em vertentes mais alegóricas, em busca de histórias fantásticas (Vale) ou com um fundo mais espiritual (Bittencourt), Oliveira se arriscou mais, optando por um existencialismo que muitas vezes esbarra em um realismo fantástico – cortesia de uma sólida formação intelectual e uma curiosidade insaciável em busca sempre de explicações.  As raízes existencialistas permeiam todo o trabalho com uma qualidade impressionante das letras e o completo domínio do conceito. 

Conexões

A habilidade na criação de narrativas e no encadeamento do roteiro são extraordinárias, elevando ainda mais o nível da obra, com um conceito lírico profundo, denso e abrangente – muito bem elaborada e se apoiando em texturas delicadas e arranjos de bom gosto.

E, mais uma vez, é necessário destacar outra semelhança com os melhores trabalhos do Dark Avenger, especialmente quando se verifica a força do conceito de busca de uma identidade e de um conforto emocional que caracteriza a obra.

A conexão com a brasilidade encontra paralelo também com “Vera Cruz”, o épico do descobrimento do Brasil perpetrado por Edu Falaschi (ex-Angra e Almah), lançado no ano passado. A diva Elba Ramalho abrilhantou o disco de Falaschi e também participa de “Inter Mundos” com um colorido todo diferente.

Se em “Vera Cruz” ela se mostra mais esfuziante e exuberante, em “Inter Mundos” ela mostra doçura e sabedoria em uma interpretação também vigorosa, mas se adequando ao clima da obra. Além dela e de Daniela Serafim aparecem nas canções Daísa Munhoz (Twilight Aura, Vandroya), Derek Sherinian (Sons of Apollo), John Macaluso, Felipe Andreoli (Angra) e Hugo Mariutti (Shaman).

“O novo álbum do Caravellus é fruto do amadurecimento musical e do refinamento da missão artística estabelecida por esta banda”, diz Oliveira com empolgação. “Culturalmente… Se o Brasil fosse um rio, o Nordeste brasileiro seria a fonte desse rio.”