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 Marcelo Moreira

David Gilmour (FOTO: DIVULGAÇÃO)        


Sua missão era bem desconfortável: segurar as pontas do líder e guitarrista, que estava cada vez mais fora de órbita. Não sabia bem o que tocaria e para onde aquela banda que ainda tinha um nome a zelar iria, e tudo soava desconfortável.

Mal sabia ele que tudo iria piorar quando, meses depois de entrar para o grupo, então um quinteto, foram direto para um show sem passar na casa do tal guitarrista. Todo mundo estava sem paciência, e a banda fez uma aposta: Syd Barrett, vocalista, guitarrista e líder do Pink Floyd, não faria falta.

Foi aí que David Gilmour respirou aliviado: não sabia como dizer ao restante do grupo que estava inviável tocar daquele jeito caótico e sem direção. Não precisou falar nada e nem decidir nada, e começou ali, no comecinho de 1968, a sua vertiginosa ascensão como um dos nomes mais importantes do rock.

O inglês Gilmour saboreia os seus 75 anos recém-completados como aquele cidadão que sabe qual é o seu lugar no panteão da música. É um dos seletos instrumentistas que pode ser reconhecido à primeira nota, como Jeff Beck, como Eric Clapton, como Tony Iommi, como Ritchie Blackmore, como o amigo Brian May…

Ainda não tem o título de sir, mas nem precisa, a julgar pelo tamanho e pela quantidade de reverências que recebe. O mito Paul McCartney resolveu tocar clássicos dos anos 50 e de sua juventude no Cavern Club, em Liverpool, e quis montar uma banda para a ocasião e não pensou duas vezes: seu guitarrista seria o amigo David Gilmour.

Pete Townshend, do Who, queria um companheiro para dividir uma turnê e compor alguma coisa diferente em 1984. Não pensou duas vezes em chamou Gilmour. 

Já David Bowie soube que o ex-guitarrista do Pink Floyd estava promovendo um show de arromba em Londres e imediatamente ligou para o amigo e se convidou para cantar duas músicas: “Seria uma honra”, afirmou após a intimação.

Músico extraordinário, estilista inconfundível e referência em todas as áreas do show business, Gilmour decidiu desde cedo que queria tomar conta da carreira. Teve de esperar um pouco até sentir que era a hora de confrontar de vez o desafeto Roger Waters, baixista que quis virar dono do Pink Floyd.

A briga foi parar nos tribunais, com Waters querendo encerrar as atividades do grupo depois de 20 anos. Com as garras afiadas, mas sempre mantendo a fleuma, o guitarrista bateu o pé e conseguiu na Justiça o direito de continuar a usar o nome Pink Floyd.

E foi com a discrição de sempre, no seu tempo, que Gilmour levou a banda a uma suave (e lucrativa) desaceleração até que colocou o grupo em hibernação em 1995. Para ele, a questão estava encerrada e só lhe restava curtir a vida de músico bissexto milionário. Com isso, teve tempo de dar um fim digno ao Pink Floyd em 2015, com um disco de sobras de estúdio, mas bem produzido.

Cansado e desinteressado? A julgar pelos bons discos solo que lançou neste século, o que temos é um astro que pode se dar ao luxo de fazer o que quer. Dez ou quinze anos de espaço entre seus discos? Ele não se incomoda. 

Turnês mundiais? Só da maneira como lhe convém, como ocorreu há cinco anos, quando passou pela primeira vez pela América do Sul em um giro com sua própria banda – ele tocou em 1992 na Colômbia, em um combo que incluía Roger Daltrey, do Who, mas nem ele mesmo se recorda a inusitada passagem.

Gilmour sabe que é astro e não se importa de maneira alguma com essa questão. Em entrevista concedida para um documentário sobre a sua carreira, costuma dizer que é um multi-instrumentista que toca mal vários instrumentos, e que não tem compulsão alguma pela guitarra, ficando longos períodos em encostar em uma.

Por qualquer ponto de vista, o ex-guitarrista do Pink Floyd é um artista diferente e singular, seja pela discrição, seja pela forma como encara o estrelato no rock. Parece saber o timing exato de agir e se expor, quase sempre sem se queimar.

David Gilmour é um dos gigantes do nosso tempo, daqueles cidadãos que fizeram muita gente sonhar e seguir em frente. É um daqueles que ajudou a mitificar a guitarra como sinônimo de cultura ocidental e a transformou em objeto alvo de veneração. 

Os solos contidos nas músicas “Comfortably Numb” e “Shine On You Crazy Diamond” talvez sejam as maiores evidências da genialidade do cara que moldou o som do Pìnk Floyd. Ele pode se orgulhar de ter feito sua guitarra se entranhar em nossas vidas.