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Eric Clapton is gado. O mestre da guitarra do rock e do blues tornou-se um alvo fácil diante do seu negacionismo e de suas palavras estapafúrdias contra as vacinas para debelar  covid-19 e o isolamento social. Brasileiros invadiram as redes sociais para “depredar” as fotos que davam conta das pichações nos muros londrinos de 1965 exaltando as qualidades do músico inglês: “Clapton is God” (Clapton é deus” virou “Clapton is gado”, em português mesmo, para gozação mundial.

Se Eric Clapton tivesse uma estátua em Londres ou em São Paulo, ela seria queimada, como a do Borba Gato nas manifestações antibolsonaro e a favor da vacina do último sábado (24).

Devemos queimar Clapton, em qualquer sentido? Devemos massacrar todos o negacionistas e cultuadores das trevas e do retrocesso? Suas obras merecem ser queimadas como livros foram em vários episódios ao longo da humanidade?
Destrir obras de arte, física ou virtualmente, é um ato extremo e de extremismo, independentemente dos conceitos que temos do que sejam obras de arte. 

O lixo religioso fundamentalista destruiu obras milenares o no Oriente Médio dentro do ódio talibã e o Exército Islâmico, mas também envolvendo a fúria evangélica em relação às culturas nativas e indígenas no Brasil e nos Estados Unidos. Como lidar com isso?

A depredação de Clapton é mais virtual do que física, mas certamente seria alvo se existisse fisicamente. é como se as estátuas de Phil Lynnot fosse vandalizada em Dublin ou a de Bon Scott (AC/DC) em Perth (Austrália) ou na Escócia fossem incendiadas. Vamos tolerar esse tipo de coisa?

O vandalismo contra a estátua do Borga gato na sul de São Paulo, no sábado 24 de julho, reacendeu mais uma vez o debate acerca da preservação e do valor do patrimônio cultural e seus significados. Depredar está se tornando um ato político, supostamente validando posições políticas deploráveis e antidemocráticas.

Eric Clapton (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Devemos apagar Duque de Caxias de nossa história? Devemos varrer para a fosse gente como Getúlio Vargas, Eurico Dutra, Washington Luís, Ernesto Geisel e muitos outros?

É uma discussão difícil, longa, violenta e que não tem respostas simples. Os mais apressados dirão que é melhor analisar caso a caso. Afinal, se várias cidades do Brasil discutem seriamente a troca de nomes de ruas e praças ara banir seres execráveis da ditadura militar nojenta de 1964.

Outros desprezam as reclamações a respeito do vandalismo, acreditando que já passou da hora de derrubar símbolos que homenageiam seres ou fatos que envergonham a humanidade. 

Houve quem tivesse a petulância de dizer que as críticas ao incêndio do Borba Gato era uma “exaltação do bandeirantismo como forma de “elogiar um passado paulista digno de louvor”. é o mesmo tipo de gente que relativiza qualquer tipo de vandalismo em qualquer manifestação diversa, passando pano para lixos humanos como os black blocs.

Se em algum momento era possível compreender as erupções violentas por conta da violência policial contra a população negra e pobre no Brasil e nos Estados Unidos, agora carece de sentido apoiar qualquer tipo de depredação promovida por grupelhos asqueroso e oportunistas quando a causa é muito maior.

Há uma quantidade gigantesca de erros conceituais e de postura nesse quesito. Incendiar a estátua de um bandeirante assassino e escravagista, vira carro de política e quebrar vitrines estão sendo colocados no mesmo saco de gatos e utilizado como verborragia de acordo com a conveniência.

Não resta dúvida que a queima da estátua na zona sul paulistana se trata de um ato infantil e desprovido de qualquer lógica. Não passou de uma ação motivada por simples idiotice de gente analfabeta política e histórica. 

Justamente em um momento em que o país inteiro se levanta contra um presidente incompetente, autoritário e genocida, um bando de ignorantes atenta contra a sensatez e atua para desviar o foco do que interessa realmente e fornece munição para a direita conservadora – logo agora que esta está acuada e sem argumentos.

Não bastasse o erro político evidente na atualidade, chovem argumentos equivocados a respeito da representação histórica do que significa a própria estátua do bandeirante. 

Por que destruir agora, e não quando o mundo se levantou contra os atentados ás vidas negras massacradas pelas polícias em diversos países? O que explica esse oportunismo fora de propósito?

Vandalismo é crime, assim como pichação, queiram os adeptos e acadêmicos que aplaudem as “mensagens políticas”. apoiar vandalismo abre um precedente perigoso: de qualquer depredação é uma “manifestação política”, então a destruição de obras históricas, independente de seu valor ou de origem, é válida, inclusive quando o alvo é de “esquerda”.

Por que de uma hora para outra o Borba Gato virou alvo execrável e que merece ser destruído em 2021? Erguido em 1957, por que não mereceu ser derrubado antes? Por que essa consciência histórica agora?

Quando queimarem qualquer símbolo abolicionista ou que faça alusão ao Lula qual será a reação dos que relativizam o incêndio do Borba Gato?

Acho válida a discussão de sumir com a estátua, em um revisionismo tardio, assim como estamos fazendo com os nomes de praças e ruas. Mas a questão hoje é outra. Desviar o foco do fascismo é dar munição para os fascistas e oferecer manchetes para a imprensa preguiçosa e ávida por imagens sem conteúdo, como as depredações promovidas pelos merdas dos black blocs. 

Por que ninguém lembrou de colocar fogo na estátua quando das manifestações antirracistas? Aí faria algum sentido. Manifestante radicalzinho de perifa, mas de fim de semana, só atrapalha. 

Por muito menos a Justiça proibiu exposição de fotos em Minas Gerais por causa de um abraço entre FHC e Lula. Como explicar essa atitude seletiva em relação à própria democracia?

“Mas o povo derrubou as estátuas de Lenin, Stalin e muitos outros genocidas e autocratas pelo mundo.” É um argumento falacioso e encharcado de desonestidade intelectual. Foram derrubadas em meio a revoluções nacionais que derrubaram regimes totalitários existentes há mais de 70 anos. 

Queremos revolução para destruir e depredar para tentar mudar e criar algo novo? Então a façamos e a levemos a cabo. Vamos fazer a revolução, quebrar tudo, destruir estátuas e símbolos que nos incomodam, e parar de brinca de protestar na avenida Paulista ou na avenida Getúlio Vargas (que ironia, avenida como nome de ditador servindo de palco para atos de preservação da democracia…).

E o que dizer das estátuas dos traficantes de negros africanos derrubadas em cidades inglesas no ano passado? Não passaram de mero oportunismo por conta da comoção ocorrida pela morte do cidadão George Floyd, nos Estados Unidos. Por 200 anos estiveram no mesmo local e nunca mereceram a atenção da população local.

Justamente por ser um assunto controverso, merece um debate mais equilibrado e nenhum um pouco passional. Comparar o atentado ao Borba Gato à derrubada de estátuas no Leste Europeu é um equívoco gigantesco. É preciso separar o que é patrimônio histórico, obra de arte e uma mera homenagem pessoal. 

Como vamos classificar a estátua de Carlos Drummond de Andrade em uma praia do Rio de Janeiro, alvo de constantes depredações? E a estátua de Duque de Caxias na praça Duque de Caxias, no centro de São Paulo?

Persistir neste tipo de erro histórico, que ignora contextos e relativiza crimes, é municiar os adversários da democracia e das liberdades de opinião, expressão e de imprensa, que usam essas posturas contraditórias e idiossincráticas para minar a resistência e desacreditar a verdadeira luta contra o atraso.

Tudo isso nos leva de volta ao negacionista Eric Clapton, que deixou de ser deus há muito tempo, desde que vomitou palavras racistas em 1976. Seu cancelamento é merecido, mas sua obra é notável. Fica cada vez mais difícil separar autor e obra, mas é um exercício necessário para evitar certas injustiças e o envio de verdadeiras gemas para a lata de lixo.

A vandalização da imagem “Clapton is God/Gado” embute um simbolismo impactante nestes tempos difíceis e estranhos, mas não podemos ignorar a história e a beleza de “Blues Power”, “Layla”, “White Room” e outras coisas extraordinárias criadas pelo guitarrista. Assim como não podemos ignorar o legado e a história que a estátua de Borba Gato carrega.

Para encerrar, a interessante reflexão do jornalista Reynaldo Gollo publicada nas redes sociais:

“Revisionismo histórico, independentemente de boas ou más intenções, não deixa de ser censura. Querer reescrever a história é sempre uma ameaça à democracia e aos direitos de opinião. As religiões são responsáveis por inúmeros crimes históricos em toda a humanidade; então, por isso, seria válido queimar obras de Leonardo da Vinci, Rafael, Ticiano, Michelangelo e outros por tratarem de temas religiosos? Devemos queimar pinturas que retratam tiranos, com os Borgia, Napoleão, Alexandre Magno e tantos outros que cobrem as paredes do Louvre, Uffizzi, Masp etc.? Estátuas, nomes de ruas ou prédios são apenas registros de seu tempo. Não entra no mérito do bom ou mau. É esse revisionismo é uma perigosa porta para a censura. Afinal, quem decide o que é certo ou errado (Vale lembrar um exemplo simples: muitas pessoas que trabalharam com Charles Chaplin e alguns membros de sua família o classificavam como “um monstro”. Vamos queimar seus filmes?’