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Algumas autobiografias de ídolos de rock lançadas no Brasil nos último anos ganharam destaque por serem bem escritas, ás vezes reveladoras de fatos espinhosos, ou mesmo por contar coisas inéditas, quase sempre escandalosas. Poucas, no entanto, se notabilizaram pela pela sinceridade – Eric Clapton, Elton John, Pete Townshend, Andy Summers e, com boa vontade, Paul Stanley (Kiss).

No entanto, muitas também ganharam notoriedade por conta do que não contaram e, às vezes, pelas entrelinhas que escondiam coisas mais serias. Pete Townshend decidiu deixar The Who em segundo plano, Keith Richards preferiu ser ácido e sarcástico ao comentar sobre Mick Jagger e Eric Clapton teve coragem para encarar os seus demônios.

Roger Daltrey, vocalista de The Who, enveredou por outro caminho em “Valeu, Professor Kibblewhite”, sua autobiografia recém-lançada pela Editora Best Seller no Brasil. Mais enxuta do que o normal e com um texto sem rebuscamento, quis ser direto e reto, com algumas piadas e nada mais.

Ao contrário dos colegas de profissão, investiu bastante ao contar bastidores de sua carreira e de sua trajetória, e detalhou o mundo dos negócios do rock e do show business dos anos 60 e 70, os relacionamentos entre os astros e a dinâmica dentro da banda.

Sem dosar na franqueza, expôs um mundo mais real do que colegas como Elton John, Rod Stewart e Townshend, por exemplo. O acerto foi grande e, como informação sobre o rock, o livro é bem valioso.

Daltrey conta o suficiente sobre a família e os filhos – nem todos são citados, contando todos os casamentos e os “descobertos” ao longo das décadas. Tece muitos elogios a Heather, a mulher que o atura desde 1971, reclama do pouco tempo que dedicou aos filhos com ela, mas o tempo maior é dedicado à vida nos palcos.

Ele dirime todas as dúvidas: foi que criou The Who e aprovas as entradas de John Entwistle (baixo) e Pete Townshend (guitarra) entre 1961 e 1962, quando a banda se chamava Detours. Deixa claro que a chegada do baterista Keith Moon passou pelo seu crivo.

E finalmente o cantor esclarece uma dúvida de décadas: ele e Townshend são amigos, mas nunca fora amigos. Mas como assim?

Muitos roqueiros interessados na história do gênero ficaram com a impressão de que bandas são realmente famílias e irmandades por conta das amizades entre os integrantes dos Beatles, que saíam juntos para beber e frequentavam as casas uns dos outros. O mesmo relação a Mick Jagger e Keith Richards, que costumavam viajar sempre juntos, nas férias, até meados dos anos 70.

No Who, isso jamais foi verdadeiro. Daltrey faz menções carinhosas aos outros integrantes da banda – e até ao desafeto Kenney Jones, baterista que substituiu Keith Moon em 1979 -, mas é categórico ao dizer que eram apenas colegas de trabalho. Cada um tinha sua vida fora da banda e eles não faziam questão da companhia um do outro.

Recentemente, em entrevista para divulgar seu novo livro, “A Era da Ansiedade”, Townshend confirmou esse estado de coisas. “Sempre fomos muito diferentes e discordávamos muito. Melhorou muito nossa relação nos último anos. Sempre houve uma sintonia brutal entre eu e Daltrey, mas não posso dizer que éramos próximos ou somos próximos. Não me lembro de tê-lo convidado para jantar em casa ou vice-versa. Nunca saímos para tomar cerveja.”

The Who em foto promocional da turnê norte-americana de 1975: da esq. para a dir., Keith Moon (bateria), Pete Townshend (guitarra), Roger Daltrey (vocais) e John Entwistle (baixo) (FOTO: DIVULGAÇÃO)

As menções à genialidade de Townshend como músico e compositor permeiam a obra, mas as diferenças entre eles são um ponto central na narrativa. São várias as alfinetadas ao guitarrista, sempre seguidas de explicações e uma amenizada. “Sou da classe trabalhadora e Pete é classe média. Eu sempre dependi do dinheiro vindo do meu trabalho e sempre precisei correr atrás. Pete, por muito tempo, nunca dependeu diretamente do dinheiro do Who. Pensamos muito diferente e vivemos sempre em mundos diferentes.”

Na narrativa de Daltrey é possível compreender aspectos práticos de como funciona a organização de uma turnê mundial, o relacionamento com empresários e promotores de shows vagabundos e vigaristas e os problemas de solidão e excessos de drogas.

O cantor é especialmente didático quando explica os riscos e os imensos problemas que o cancelamento de uma turnê podem trazer. O exemplo que usou? O giro americano de 2002.

O baixista John Entwistle, cardíaco e alcoólatra, tinha retomado o uso de cocaína e teve uma overdose em seu quarto de hotel, em Las Vegas, na véspera do começo da turnê. Morreu ao lado de uma groupie, que sumiu rapidamente da cena.

“O cancelamento da turnê era inviável, já que o seguro não cobriria os custos em caso de morte por uso de drogas. Corríamos o risco de banimento e de um prejuízo milionário, que quebraria todo mundo e prejudicaria, inclusive, mãe, ex-mulher e filho de John, que ficariam sem receber nada. Cancelar não era uma opção”, contou Daltrey.

Os dois primeiros shows foram adiados para o fim da turnê, enquanto o ótimo baixista galês Pino Palladino, que já tinha trabalhado com os remanescentes do Who, foi chamado às pressas para ensaios e continuar a turnê. O músico ficou na banda de apoio da banda até 2015, quando cedeu seu lugar, por questões de agenda, ao jovem Jon Button.

“Sei que pode parecer insensibilidade, mas eram questões práticas que precisavam se resolvidas. Só muito temo depois eu e Pete paramos para ter algum tipo de luto por nosso companheiro”, tentou se justificar, mas não fazendo questão de esconder certo ressentimento pela “pisada de bola” de Entwistle.

Em relação a Keith Moon as palavras também são de carinho, mas não muito. Deixou evidente que não se davam muito bem desde a entrada do baterista, a quem considerava gênio, mas extremamente problemático. Não teve pudores em culpar o colega por muitos dos problemas que a banda tinha na estrada e por colocar a perder parte do dinheiro arrecadado em turnês por causa das depredações em hotéis e dinheiro a rodo gasto em drogas ao lado de um dos empresários dos primeiros dez anos, o aspirante a dândi Kit Lambert, morto em 1981.

Também aqui é necessário mostrar que a franqueza do vocalista foi bem cruel para com o substituto de Moon, morto em 1978 em razão de overdose de remédios. Kenney Jones, amigo estimado de todos da banda, tinha prestígio por ter tocado com Small Faces e The Faces. Townshend o convidou para a banda sem consultar os companheiros e ainda o colocou com status igual, ou seja, ganharia a mesma coisa que todos, o que enfureceu Daltrey.

“Kenney é um excelente baterista, e foi muito bem nos Faces, mas não funcionou com The Who. Jamais funcionaria. Ele travava a banda e tirava a nossa energia ao vivo e no estúdio. Moon jamais tocou com metrônomo e Kenney não tinha a ginga que precisávamos. Sempre gostei dele, mas nunca tive medo de dizer o que achava e o fiz na cara dele, pelo bem da banda. Fui voto vencido, o clima ficou esquisito e minha insatisfação musical se juntou com as questões de Townshend, que tinha acabado de sair da reabilitação em 1982. A banda a tinha de acabar e acabou”, relata o cantor de forma dura.

De forma surpreendente, o livro de Daltrey é recomendável porque traz informações legais para quem gosta de música e quer entender melhor o funcionamento do “mundo real” das estrelas. É um relato sem o glamour e de como pode ser tão chato e tedioso, quando não tóxico e insalubre, das celebridades que realmente acreditam ser diferentes e superiores.