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 Marcelo Moreira



Um disco póstumo, com algumas sobras e versões diferentes para clássicos do blues, pode ser bom? Pode no caso de o intérprete ser um ícone da música britânica. 

No ano em que a morte de Gary Moore completa dez anos, somos brindados com um excelente lançamento que faz jus à carreira do mestre irlandês da guitarra, que tinha alma no blues mesmo circulando com desenvoltura no rock pesado nos anos 80.

“How Blue Can You Get” tem, quatro músicas autorais e quatro versões para clássicos do blues, anteriormente gravadas por gente como Elmore James e B.B. King.

A faixa-título, famosa com o guitarrista B.B. King, é um primor de feeling, com a guitarra chorosa e pegajosa de Moore fazendo contraponto com uma melodia básica e certeira. É o destaque do disco e fica a pergunta: por que não foi lançada antes?

O mesmo pode ser dito de pelo menos duas canções autorais: “In My Dream” e “Living with the Blues”, que poderiam estar perfeitamente nos discos dedicados ao gênero lançados pelo guitarrista irlandês nos anos 90.

É uma homenagem e tanto para um grande músico que se tornou referência e blues na Europa enquanto o mundo mergulhava fundo no grunge e, pouco depois, no chamado britpop. 

Um talento em busca de um caminho
 

Uma personalidade em constante conflito que achou a paz e o sucesso no blues, em um retorno oportunista, mas totalmente coerente com a sua trajetória. E assim Gary Moore se tornou gigante, ganhando o respeito do grande público.

Morto há dez anos, o guitarrista irlandês nunca escondeu que tinha o objetivo de se ombrear em idolatria ao amigo e parceiro Phil Lynott, baixista do Thin Lizzy que morreu em 1986 e que ganhou uma estátua em um cruzamento importante em Dublin, a capital da República da Irlanda. Será que Moore conseguiria o mesmo na sua amada e tempestuosa Belfast, capital da Irlanda do Norte?

Talvez ainda seja cedo para saber, mas o irascível, genioso e talentoso guitarrista atingiu os maiores objetivos traçados ainda nos anos 70: fazer sucesso e ganhar dinheiro, ainda que suas passagens por Skid Row, Colosseum II e Thin Lizzy não indicassem um caminho para o estrelato.

Ele já estava chegando aos 40 anos de idade com a pecha de instrumentista subestimado e injustiçado pelo talento imenso que esbanjava. 

A carreira solo bem-sucedida era um alento, mas ele queria mais. Era ídolo de mita gente que curtia o seu rock pesado e intenso, seus solos incandescentes e sua força invejável, mas parecia que faltava algo.

 Então ele redescobriu o blues e virou astro internacional, a ponto de sua música “Still Got the Blues”, também título de um álbum, a ponto de sua massiva execução incomodar, da mesma forma que a versão da canção de Natal de John Lennon na voz de Simone.

As críticas de oportunismo o machucaram, mas também o fortaleceram a ponto de seguir em frente e desfrutar o sucesso blueseiro tardio. Mas, para GaryMoore, parecia que sempre faltava algo.

As coisas nunca foram fáceis para o garoto que cresceu na melancólica e bucólica Belfast, que se tornaria um campo de guerra no final dos anos 60 pelo renascimento do nacionalismo irlandês na parte norte da ilha, vinculada ao Reino Unido e infestada por uma população protestante.

Os católicos, em minoria nos seis condados da Irlanda do Norte, mas apoiados pela imensa maioria da população da vizinha do sul, a República da Irlanda, se cansaram da discriminação e do ódio a que eram submetidos e insuflaram a volta do nacionalismo, que resultou na independência do sul, em 1922, e no rompimento total com o Reino Unido em 1949, quando da retirada da Comunidade Britânica de Nações. Quase ninguém deu ouvidos em Dublin e em Londres, naqueles anos 60, que Belfast e Londonderry, outra cidade norte-irlandesa, eram barris de pólvora prestes a explodir.

E explodiram na segunda metade dos anos 60. O ressurgimento do IRA (Exército Republicano Irlandês), entidade fundamental para a campanha de independência entre 1916 e 1922, foi o ponto de partida para a “defesa dos católicos nacionalistas da Irlanda do Norte contra os unionistas e monarquistas partidários da Rainha”. 

Esse pano de fundo, na verdade escondia o desejo de todos os católicos irlandeses, que era unificação da ilha e a progressiva expulsão dos protestantes para a Grã-Bretanha. Terrorismo e violência passaram a ser sinônimo de Belfast naqueles tempos sombrios em que um jovem guitarrista precisava peregrinar entre as duas capitis irlandesas para tocar seu instrumento e fazer o seu rock and roll. 

E todo esse clima bélico e pesado está impregnado em sua música desde sempre, do começo do blues nos anos 60, passando pelo Skid Row, pelo Thin Lizzy, pelo Colosseum II e pela furiosa carreira solo do começo dos anos 80, quando abraçou o hard rock e finalmente começou a ser reconhecido como um guitar hero.

Moore pode ter sido subestimado até certo ponto, e conseguido um sucesso tardio por meio do blues, mas é inegável que sua paixão pela guitarra impactava todo mundo e despertava muita admiração.

 Idolatrado por uns, invejado por outros, era um guitarrista da estirpe de Frank Zappa, Yngwie Malmsteen, Ritchie Blackmore e mais alguns outros no quesito impacto: ninguém consegue ficar indiferente ao peso de sua guitarra e do seu característico timbre bluesy.

Dez anos sem Gary Moore é muito tempo. Como tantos e tantos outros, faz bastante falta. Morreu aos 58 anos de idade, de ataque cardíaco, justamente quando parecia que iria finalmente aproveitar a vida e tirar o pé do acelerador.

Pouca gente se lembra que um dos maiores feitos do músico foi promover uma completa e instigante união entre os músicos irlandeses, a ponto de um filho de Belfast ser o nome principal da homenagem feita a Lynott em Dublin, quando da inauguração da estátua representando o amigo. 

Moore sonhava com uma Irlanda unida ao menos culturalmente, em que religião e política não fossem suficientes para separar os roqueiros e os adeptos da música tradicional gaélico-irlandesa. 

Até certo ponto, ele conseguiu manter as barreiras no chão, coisa que nem mesmo a saída do Reino Unido da União Europeia – a República da Irlanda continuará no bloco – será capaz de reverter. Não é pouca coisa.