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Duas máximas a respeito do rock são bastante propaladas dentro da música, mas que quase ninguém nunca comprovou na prática: rock/ meta é um estilo de vida e é possível viver disso dentro de um contexto onde existe respeito e tolerância. Mas será que um lugar como esse existe, sendo que nem mesmo nos Estados Unidos isso foi uma verdade absoluta?

“A Heavy Metal Civilization”, um documentário de autoria das jornalistas brasileiras Cristina Ornellas e Maila-Kaarina Rantanen tentam responder a essa questão e a provar que, se esse lugar não existe de forma perfeita, a Finlândia, no norte da Europa, é o local em que se chegou mais perto disso.

O documentário é uma das atrações do 14º In-Edit – Festival Internacional de Documentários Musicais, que ocorre de 15 a 26 de junho. Será exibido na Cinemateca Brasileira (no dia 25, sendo que neste segundo o dia o jornalista Marcelo Moreira, deste Combate Rock, fará a apresentação e mediação de debate) e no Centro Cultural São Paulo (no dia 26).

A ideia do trabalho é mostrar os motivos de o metal ser um estilo de vida na Finlândia, ter ampla aceitação e ser considerado como um patrimônio cultural imaterial do país, assim como o rock, algo que outro gênero musical nunca alcançou com tanto sucesso – e olhe que a música erudita e bastante difundida no país.

O metal. embora não esteja mais no auge, sempre foi algo natural para os finlandeses, que nunca manifestaram intolerância e ou restrição à música pesada e extrema. A palavra-chave aqui é tolerância, que tem como suporte uma educação de primeiro nível e o estímulo a todas as manifestações artísticas, banindo quase que totalmente as formas de preconceito.

Sempre se soube que a Finlândia era um país do metal e do rock, mas coube a duas jornalistas brasileiras a tarefa de sistematizar e tentar explicar o porquê de um gênero nascido nos Estados Unidos e aperfeiçoado na Inglaterra praticamente ter se tornado um sinônimo de manifestação cultural finlandesa, especialmente nos gêneros mais pesados e extremos.

Cristina Ornellas é brasileira e mora há nove anos no país europeu. Ela se tornou praticamente uma assistente em tempo integral do guitarrista brasileiro Kiko Loureiro (Megadeth, ex-Angra), que se casou com uma finlandesa e tem casa na capital do país, Helsinque.

Maila-Kaarin Rantanen é carioca, filha de pai de finlandês e mãe brasileira. Passou a a infância em Penedo, no interior do Estado do Rio de Janeiro, e a juventude no Rio antes de encarar temporadas no país do pai até se fixar definitivamente por lá em 2009.

O documentário é bem simples e curto, apenas 40 minutos de duração Sem rebuscamento ou sofisticação estilística, empilha depoimentos com os mais importantes músicos finlandeses de rock e heavy metal na tentativa de explicar o porquê de a Finlândia ser a |”terra feliz onde o heavy metal é um estilo de vida”. 

Ok, faltaram alguns nomes, como Tuomas Holopainen (tecladista do Nightwish), Tarja Turunen (ex-Nightwish, mas que mora na Argentina e no Caribe), Timo Tolkki (ex-Stratovarius) e Timo Kotipelto (Stratovarius), mas isso não chega a influenciar no resultado final.

Como produto informativo, “Heavy Metal Civilization” é precioso por abordar de forma objetiva um gênero musical que recebe pouca atenção de documentaristas. Não consegue responder à pergunta principal, mas levanta tantas evidências com as várias entrevistas que oferece um panorama bacana para que o expectador consiga chegar a várias conclusões.

Duas coisas parecem ser unanimidade entre os músicos finlandeses: o alto nível de vida da sociedade finlandesa – país rico, que investe muito em educação e cultura – favorece demais a proliferação do metal dentro de um ambiente onde predominam a liberdade e a tolerância; país pequeno e gelado, que permanece 90% do ano no “inverno e no no escuro”, não restando outra coisa para fazer a não ser estudar muito música e mergulhar de cabeça no heavy metal, como declararam ao menos dez dos músicos entrevistados  entre eles Kiko Loureiro, o único não finlandês ao lado de Scott Ian (guitarrista do Anthrax) a falar para as duas jornalistas.

Abaixo, leia entrevistas com Cristina Ornellas e Maila-Kaarina Rantanen, diretoras do filme:

Qual é o envolvimento de vocês com o heavy metal e o rock?

Cristina Ornelas – A música sempre foi o meu motor. Desde que me entendo por gente, me lembro de ter essas preferências musicais de forma espontânea. No decorrer da vida, trabalhar com isso aconteceu naturalmente. O documentário veio como parte de uma materialização desse amor pelo heavy metal.

Maila-Kaarina – Rock e metal para mim são mais do que estilos musicais, são meu modo de vida, minha inspiração. Descobri o heavy metal em 1988, com 11 anos de idade e, desde então, sempre tive a certeza de que traria a música para a minha vida profissional também. Aos 16 anos comecei a tocar em bandas de metal e assim começou a história que me profissionalizou e, além de outros feitos, inspirou “A Heavy Metal Civilization”.

Desde quando vocês estão morando na Finlândia? 

Cristina Ornelas – Há nove amos!

Maila-Kaarina – Direto, desde 2009. Mas tive algumas idas e vindas. Tenho nacionalidade finlandesa, meu pai é finlandês de uma cidade chamada Kouvola. Minha família finlandesa é maior do que a brasileira (por incrível que pareça). A Finlândia sempre foi meu país tanto quanto o Brasil. Antes de 2009 passei períodos aqui em 1996, 2003 e 2006.

Como surgiu a ideia do documentário?

Cristina Ornelas – Em algum momento, por volta de 2016,  me lembro de conversar com a Maila (Maila Karina Rantanen, codiretora) sobre a vontade de elaborar algo assim. A vontade era criar algo visual, que primeiro foi um canal no YouTube, hoje regido por mim apenas, mas que depois evoluiu para a ideia de um produto único, o documentário.

Maila-Kaarina – Eu e Cristina descobrimos uma a outra pelo Facebook. Morávamos perto, tínhamos acabado de ter nossos filhos e ambas tínhamos um histórico profissional jornalístico sólido envolvendo música e heavy metal. Resolvemos criar um canal no YouTube para mostrar a cena finlandesa e a presença do rock e do metal no dia a dia finlandês. Isso foi em 2015. Trabalhamos duro no canal porque queríamos produzir material com boa fotografia e qualidade de edição, além das histórias, claro. Mas dava muito trabalho e um retorno que não justificava a quantidade de horas que trabalhávamos. Cristina é muito fã do Sam Dunn e me mostrou o documentário “A Headbanger’s Journey” Assistimos ao filme juntas, eu ainda não tinha visto. Quando terminou, olhamos uma para a outra e foi imediato: vamos fazer um documentário sobre a história do heavy metal finlandês!

Hoje há apenas duas rádios rock em São Paulo, praticamente dedicadas ao clássico rock. O gênero no Brasil virou underground, com a diminuição dos locais para rock autoral ao vivo (até por conta da pandemia). Exatamente o contrário da Finlândia, onde há um espaço grande para a música pesada. Como é o cenário aí para bandas pequenas ou iniciantes?

Cristina Ornelas – Posso te dizer com certeza que essa queda também aconteceu aqui, inclusive é um assunto falado por vários artistas do gênero durante o documentário. Estamos num momento de maré baixa, pouco impulso, se comparado há 20 anos. As bandas novas têm um certo espaço, concursos internacionais como Eurovision têm tido muita abertura para rock e heavy. A audiência local ainda frequenta pequenos bares e vai aos shows. Mas, de forma menos intensa e efervescente, se comparado ao boom do metal finlandês entre 1995 e 2005. Atualmente temos em torno de quatro estações de rádio com esse foco. Ou seja? Podia estar bem melhor, mas podia ser pior também. A concorrência aqui e alta, e para se destacar tem que ser bom músico! 

Maila-Kaarina – Atualmente temos duas rádios rock com cobertura nacional, mas nas rádios populares, ao longo da programação, é comum tocar rock também. Para se tocar rock autoral ao vivo, há bastante espaço. Para o heavy metal, no entanto, apesar de haver casas específicas o suficiente para um país tão pequeno, não é um lugar em cada esquina como as pessoas imaginam. E, apesar de haver espaço para o autoral, encontramos mais artistas tocando cover na noite do que mostrando seus trabalhos, pois no fundo é isso o que o público quer quando vai tomar sua cerveja no final de semana. Os desafios de ser um artista, de querer mostrar seu trabalho e viver dele existem aqui também e eu não acho que seja mais fácil, só os desafios é que são diferentes. Na Finlândia, as bandas de rock e metal encontram uma concorrência imensa, por exemplo. E não é concorrência de estilo, mas de qualidade mesmo. O nível é alto, há músicos e bandas excelentes tocando em cada esquina. Sob a perspectiva de público, isso é muito bom, mas para quem é artista, ter muita gente fazendo quase o mesmo que você e tão bem quanto, com certeza dificulta bastante. O que é diferente é que o heavy metal não é visto como algo marginal. Trata-se de uma subcultura que coexiste com todas as outras. Eu diria que essa é a grande diferença, pois abre mais espaço, o estilo não é empurrado para o fundo do poço, ele consegue se impor e é respeitado como um ativo cultural de qualidade.

O rock deixou de atrair os jovens no Brasil e nos Estados Unidos, já não “fala” mais língua deles, perdendo espaço para rap, hip hop, sertanejo e funk carioca. Os jovens finlandeses ainda se interessam por rock em nível maciço? 

Cristina Ornelas – Acredito que não mais, o baterista Gas Lipstick fala sobre isso, o rock deixou de ser rebelde há muito tempo, e na Finlândia também. E eu concordo totalmente com o pensamento: se é algo que seus pais gostam… logo ficou sem graça! E isso, misturado ao politicamente correto, tornou o rock sem sal! Não se pode fazer ou falar mais nada. Tem coisa menos atraente do que uma banda de rock e metal que não se expõe? Não se rebela? As bandas estão castradas! Sem paixão não tem adolescente que queira se associar aquilo!

Maila-Kaarina – Estamos vivendo esse problema aqui também. Alguns artistas inclusive mencionam isso no documentário. Rock e metal são o estilo que os pais dos jovens escutam e nenhum adolescente se sente popular escutando o mesmo que seus pais, certo? A juventude quer se rebelar, buscar seu próprio espaço. A partir do momento em que o rock e o metal se tornaram mainstream, a rebeldia meio que acabou, pelo menos na visão dos jovens. Então, eles buscam outras formas de se expressar. Eu diria que o hip hop é muito popular entre os jovens e adolescentes finlandeses, existe, inclusive, um movimento hip hop finlandês. Mas ainda acredito que em algum momento vai surgir uma banda, alguém trazendo a rebeldia de volta através do rock. Só não acho que será o mesmo rock que eu e você curtimos. Haverá outros elementos que conversam mais com essa geração. 

Vocês têm algum trabalho concluído ou em andamento que envolva rock ou outro gênero musical?

Cristina Ornelas – Sim! Além de ter trabalhado como assistente do Kiko Loureiro (guitarrista do Megadeth, ex-Angra) nos últimos anos, estou lançando novos quadros neste mês no YuTube, no canal “Live After Midnight”. Dus vezes por semana – terças e sextas – terei vídeos sobre “true crime”, casos policiais envolvendo sempre artistas do meio do rock e metal! Chama-se “True Crime & Heavy Metal”, nas terças. Às sextas-feiras serão vídeos lembrando o legado de ícones que já se foram,  “Life and Death of..”, sempre falando de alguém que foi marcante pra história do metal, mas que já partiu. Além desses quadros fixos, continuarei com as entrevistas com músicos relevantes do gênero, e cobertura de shows também.

Maila-Kaarina – Eu tive uma carreira musical de 17 anos no Brasil. Toquei em duas bandas que tiveram histórias legais no underground carioca nos anos 90: Dust from Misery e Asterlot. Me profissionalizei em música, estudei canto, mas também toco um pouco de teclado e violino. De 2006 a 2011 tive um trabalho jornalístico voltado para o rock e metal chamado Hard Blast, era um site bilíngue que promovia a cena brasileira e internacional. Colaborei com muitas mídias brasileiras durante esse período e também com mídias da Suécia, Inglaterra e EUA. Antes de me mudar para a Finlândia eu tive um projeto de tributo ao hard rock chamado Heartbreak Boulevard e também gravei minhas próprias músicas. Nunca cheguei a lançar meu trabalho solo, mas você pode ouvir minhas músicas aqui: https://www.reverbnation.com/mailakaarina. Lançar esse trabalho de forma conceitual, usando minha experiência em multimídia ainda está nos meus planos.

Como é o consumo de música (rock) na Finlândia? As vendas de produtos físicos ainda têm relevância?  Como a música ficou praticamente de graça e muito acessível, em grande parte do planeta a música ficou meio descartável, perdendo valor agregado e ficando “desimportante” para o usuário, que não valoriza mais o artista como antes.

Cristina Ornelas – Isso é algo interessante. O artista hoje não faz mais dinheiro vendendo música, ele vende a si mesmo! Nada NUNCA vai substituir a experiência ao vivo! Então, nesse ponto, o produto físico é o artista que performa bem ao vivo, em carne e osso. As vendas de merchandise existem, aqui todo show aqui tem a banca do artista, seja grande ou pequeno, a galera sempre valoriza! Usam mesmo! Não passo um dia sem ver alguém na rua aqui com camisa de banda! E ninguém te julga como esquisito! O pessoal curte muito! É algo que se manteve de certa forma mesmo com a queda do mercado!

Maila Kaarina – Esse período de declínio dos produtos físicos, principalmente CD, é universal, não é diferente aqui. Em moda, acho que as pessoas consomem bastante. Camisetas de banda e roupas e acessórios em geral com uma vibe mais rock e alternativa são bem populares na Finlândia e não é difícil ter acesso a isso. A moda alternativa é popular aqui mesmo fora do rock, o que eu acho o máximo. Mas no que diz respeito ao consumo de música, as plataformas musicais com certeza tomaram conta também. Há pessoas que curtem o físico, que compram, colecionam, mas acho que não é um número relevante o suficiente para fazer diferença para os artistas na hora de vender música. O que eu acho diferente, pelo menos entre os meus amigos e no meu círculo de convivência, é que as pessoas pagam por suas assinaturas e têm uma consciência melhor de que baixar ilegalmente prejudica. Não estou dizendo que todo mundo pense assim, mas muita gente pensa e prefere pagar por seus downloads para ajudar o artista.

Qual é a sua relação com o Brasil? O que achou do país nos tempos em que viveu por aqui?

Maila-Kaarina – Eu nasci no Brasil. Minha mãe é brasileira e meu pai finlandês. Conheceram-se em Penedo, única colônia finlandesa do país, em Itatiaia, no Rio de Janeiro. Apesar deu ter nascido no Rio, capital, nos mudamos para Penedo quando eu ainda era muito pequena e moramos lá até eu completar cinco anos. Naquela época, havia muitos finlandeses lá. Finlandês era um idioma que se ouvia nas ruas e nas rodas de conversa. A cultura finlandesa era muito presente e, por isso, posso dizer que ela está na minha formação mais presente do que a cultura brasileira, afinal, foram os primeiros anos da minha vida. Eu acho que nunca me adaptei 100% ao modo de vida carioca ou às manifestações culturais brasileiras mais expressivas. Até o fim da minha adolescência eu vivi com saudades de Penedo e acho que nunca me integrei 100% ao Rio. Prova disso é que busquei meu lugar no underground, totalmente fora do mainstream. Foi no meio rock e metal que consegui me sentir em casa no Brasil. Em 1996, quando vim morar um tempo na Finlândia, eu tive a certeza de que meu lugar era aqui. O que me incomoda no Brasil certamente é o que incomoda todo mundo: diferenças sociais bizarras, falta de oportunidade, falta de igualdade de gênero, corrupção e um preconceito estrutural horrível. Por mais que estes problemas existam no mundo inteiro, e aqui também a seu modo, não escalou da mesma forma. Tem muito de Brasil em mim, não nego minhas raízes. Sou apaixonada por idiomas e amo a língua portuguesa de vertente brasileira. Inclusive faço questão de só falar português com meu filho. Tenho orgulho deste ser meu idioma materno. Sou apaixonada por literatura brasileira e por muita coisa na música também. Comida brasileira? É a melhor do mundo. Mas de viver no Brasil eu não tenho saudade.

A Guerra da Ucrânia e a decisão finlandesa de solicitar entrada para a OTAN e União europeia alterou substancialmente a vida nas cidades de seu país? Afetou, de alguma forma, a produção musical do país?

s Tudo isso ainda é muito recente, ainda não deu tempo de impactar a sociedade de forma a alterar substancialmente a vida das pessoas. Se puder fazer uma comparação, a covid-19 afetou a produção musical infinitamente mais. Na verdade, a indústria e os artistas ainda estão sofrendo as consequências da pandemia. A guerra da Ucrânia trouxe de volta o sentimento da Rússia ser uma ameaça, o medo de tentarem nos invadir novamente, como no passado. A decisão de entrar para a OTAN, apoiada por mais de 70% da população, veio deste medo. No entanto, isso foi mais forte no comecinho. Agora, apesar disso ainda ser pauta diária, principalmente por causa do veto da Turquia [a entrada de um novo membro na OTAN só ocorre por unanimidade, e os turcos não querem Suécia e Finlândia ´porque estes abrigam supostos terroristas curdos e iraquianos], a sensação de se sentir ameaçado deu uma diminuída, talvez pela resistência ucraniana, que está expondo as fraquezas russas, não sei. Isso é papo para outro momento porque é bem complexo. Mas até agora o que está afetando mais a nossa vida diária é o aumento do preço do combustível, que foi surreal, e o aumento dos preços nos mercados.