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O fardo de cometer uma obra-prima, ou algumas, condena o artista a criá-las sistematicamente, como se fosse possível jogar em alto nível sempre e indefinidamente, o tempo tudo, em uma tosca analogia com o futebol.

As irritantes cobranças em cima do Iron Maiden para que faça novamente coisas como “Piece of Mind” ou “Powerslave” turvam a trajetória de álbuns muito bons recentes, como “Senjutsu” e “The Book of Souls”.

São vários os exemplos no rock, e há quem diga que os Beatles amargariam críticas negativas se entrassem pelos anos 70, a julgar pelo menos estrelado disco “Let It Be”, o derradeiro, que indicaria esgotamento criativo e decadência.

O Dream Theater, guardadas as devidas proporções, passa por um momento semelhante que já dura um bom tempo – desde 2010, uando da saída do baterista Mike Portnoy. Por mais que os álbuns mais recentes sejam bons, é ruidosa a claque, nem tão pequena, que clama por novos “Images and Words’, “Awake” e “Metropolis: Scenes From a Memory”.

O recém-lançado “A View From Top of the World” é um álbum muito bom da principal banda de metal progressivo da história. é instigante, intrigante, emociona em vários momentos e tem uma qualidade instrumental absurda. Mas vivemos em 2021 e nada do que o quinteto vier a fazer vai se transformar em “clássico”, porque os fãs “verdadeiros” querem algo como “Images and Words”, de 1992.

“Para que compor e gravar novas músicas se o público quer ouvir somente as mesmas canções compostas há 50 anos?”, perguntu Mick Jagger a um repórter tentando responder à frequente pergunta: por que o Rolling Stones não lançam disco com inéditas desde 2005?

O Dream Theater vive uma segunda fase de transição – a primeira ocorreu quando do lançamento do bom e injustiçado disco “Falling to Infinity”, de 1997. A ambiciosa ópera-rock “The Astonishing”, de 2016, decepcionou, trazendo um som mais suave e reflexivo, com guitarras limpas e teclados dominantes em boa parte do CD duplo.

Com as críticas negativas, muitas delas certeiras, o grupo se recolheu e planejou com calma a sequência da carreira. “Distance Over Time”, de 2019, chegou com a pecha de álbum de transição, em que a banda procurava o passado um elo com seus dias de glória. É um disco mais pesado, menos prog, com canções diretas e letras menos rebuscadas.

Era o disco necessário para um período de incertezas. foi muito bem recebido, embora não tenha sido um campeão de vendas e de execuções. Suas músicas, entretanto, funcionaram bem ao vivo e impulsionaram as vendas de “Distant Momories – Live in London”, do ano passado. Era a resposta que a banda esperava para dar o próximo passo com mais ousadia.

“A View From Top of the Word” é um disco que pode ser considerado uma evolução em relação ao anterior. É mais ousado, mas sem os riscos que muitos imaginavam que abanda iria correr, ainda mais em tempos de pandemia e de isolamento social.

“Distance Over Time” mirou o começo da carreira, e o novo olhou para a fase mais interessante da carreira, aquela da primeira década do século XXI. Foi uma boa escolha e muitas das alternativas escolhidas remetem aos melhores momentos dos álbuns “Octavarium” (2005), “Systematic Chaos” (2007) e “Black Clouds & Silver Lining” (2009), que são excelentes. É um retorno ao metal progressivo em que o peso e prog ganham equilíbrio quase perfeito.

As duas músicas lançadas anteriormente indicavam esse caminho. “The Alien” é uma peça de quase dez minutos com muitas variações e solos alucinantes, alternando entre passagens pesadas e climáticas, com um belo trabalho vocal de James Labrie.

“Invisible Monster” não é tão fulgurante, já que é mais metal e mais direta, sem traços de rebuscamento, retomando, em parte, o que a banda fez no álbum anterior. Serviu como segundo single, mas não representa, esteticamente, o que é o álbum.

O tesouro foi escondido no restante do álbum, que concentra as melhores músicas. “Answering the Call”, por exemplo, é uma joia que poderia estar em qualquer disco dos anos 2000, com suas passagens extensas movidas a guitarras e climas mais densos e dramáticos.

Os teclados de Jordan Rudess são surpreendentes na pesada “Sleeping Giant”, seja fazendo o contraponto à guitarra pesada de John Petrucci, seja construindo os alicerces para a estrutura melódica do que pode ser o momento mais metal do disco.

“Transcening Time” parece ser um interlúdio mais progressivo para o melhor momento do álbuns, as duas últimas canções. “Awake the Master” é a síntese de uma boa canção metal prog, organizada como pequena sinfonia, com as guitarras brilhando em riffs ótimos e solos cortantes, enquanto o teclado exuberante faz a condução melódica em várias partes.

E então o final é apoteótico com a longa e reflexiva faixa-título, dividida em suítes lembrando a estrutura de uma miniópera. Difícil não imaginar que o Dream Theater não tenha se inspirado na belíssima “Empire of the Clouds”, de Bruce Dickinson, que fecha o ótimo “The Book of Souls” com seus 18 minutos e passagens eruditas movidas e impulsionadas por seções de cordas.

“A View From Top of the World” não chega a incorporar esses requintes, mas exala sofisticação em todas as suas passagens. Em seus 20 minutos, agrupa diversas influências progressivas que vão de Yes a Genesis, de Emerson, Lake and Palmer a Pink Floyd, de Jimi Hendrix a Beatles. Estruturalmente, tem parentesco com “Close to the Edge”, a faixa-título do melhor disco do Yes.

É um álbum ousado para a época, mas não exatamente uma grande novidade. Vai agradar, e muito, quem gosta de rock progressivo metal prog, mas não causará estupefação como ocorreu, por exemplo, com “Black Clouds & Silver Lining”. Faz tempo que o Dream Theater não é inovador e nem mesmo surpreendente, mas é incapaz de entregar algo ruim.

Em busca de um caminho e novas ideias, ainda que se baseando em um passado glorioso, a banda norte-americana apresenta um disco agradável e bastante consistente, além de tecnicamente perfeito.

Quando se espera um disco do Dream Theater espera-se algo impactante, assim como em relação ao Iron Maiden. Os novos trabalhos dessas duas bandas são muito interessantes, mas não abalaram as estruturas do rock.

É provável que isso nunca mais aconteça, o que se torna reconfortante, pois nos liberta das amarras das obras-primas e nos relaxa para que apenas apreciemos música bem feita sem que haja a necessidade de “sofrer” na esperança de que recebamos mais uma “obra definitiva de todos os tempos”. Quem bom que o Dream Theater nunca decepciona.