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Marcelo Moreira


No século XXI, qualquer cientista político sério evita falar em “lado errado da história”. No máximo, reconhece perdedores e vencedores, mas dentro de determinados conceitos e contextos – um perdedor de ontem pode perfeitamente ser considerado o vencedor do amanhã.

Desde meados de novembro passado que Eric Clapton, um dos magos de sempre a guitarra, está sendo bombardeado, com razão, por conta de sua posição anti-isolamento social na Inglaterra, em um negacionismo típico dos imbecis que apoiam gente como Jair Bolsonaro.

Ele se juntou ao irlandês Van Morrison no coro contra as medidas restritivas por conta da pandemia de covid-19 implantadas lá em março e agora retomadas por conta do avanço da doença, a chamada segunda onda.

Morrison, de 75 anos, não só é contra as medidas de distanciamento social como desde agosto vem seguidamente burlando as regras, fazendo shows, ainda que para poucas pessoas, em Dublin e Londres. 

Clapton aplaudiu a coragem do amigo e, aos 75 anos de idade, também rosna contra o isolamento, afirmando que o mundo da música jamais vai se recuperar financeiramente da falta de espetáculos ao vivo. Preocupação legítima, mas com postura extremamente equivocada e perigosa. 

De forma curiosa, o governo britânico ainda não fez nenhum movimento para punir os dois velhinhos por desobediência civil.

Morrison já compôs três músicas onde desce a lenha no isolamento social e vai lançar mais um, desta vez com Clapton, com o mesmo tema, uma música chamada “Stand and Deliver”.

De novo do lado errado da história? Já não bastam as falas racistas proferidas em um show na Inglaterra em 1976, em que bradava contra a imigração e clamava por uma Grã-Bretanha branca?

Menos mal que as três músicas de Van Morrison e o novo single terão sua renda revertida para um fundo criado pelo irlandês em prol de músicos e profissionais dos bastidores dos shows que passam por imensas dificuldades financeiras. 

Entretanto, isso não justifica a estupidez e a desobediência criminosa das medidas de saúde pública contra a disseminação do coronavírus.

Mais do que negacionismo e teimosia, os dois astros veteranos mostram uma compreensão distorcida da realidade. Eric Clapton, em recente entrevista ao jornal inglês The Guardian, ignora as consequências letais da doença e repassa argumentos esdrúxulos de que a contaminação é inevitável e que outras pandemias vieram e não destruíram a economia.

Van Morrison, em depoimento para a BBC de Londres, requentou as melhores frases bolsonaristas e disse que o mundo não pode parar por conta de “meia dúzia de doentes” – ignorando deliberadamente que muitos desses doentes e dos mortos pela covid são/eram seus fãs e de Eric Clapton.

O irlandês ainda reclamou de ter de fazer shows por poucas pessoas, sendo “obrigado” a respeitas os tais “protocolos de saúde” para que possa ter a “chance de trabalhar”.

Os velhos rabugentos foram saudados por muita gente em torno do mundo. Aplaudidos e apoiados, parecem ter criado um monstro negacionista que pode crescer e ameaçar as políticas públicas de contenção da doença.

No Brasil, um dos principais redutos da estupidez coletiva anti-isolamento, a postura dos dois músicos foi um reforço ao que outra meia dúzia de lunáticos está chamando de “cruzada contra a covardia” – algo bem bolsonarista. 

Para muitos músicos e profissionais de bastidores do setor artístico, Bolsonaro tem razão ao criticar o medo das pessoas diante da morte e do vírus e que a economia está sendo destrupida por medidas de restrição de circulação e confinamento social. Ora, ora, o que são 172 mil mortes e 6,3 milhões de infectados em oito meses?

A dificuldade de entender as consequências da pandemia ultrapassa qualquer limite do bom senso. Esbarra definitivamente na deformação de caráter, ou completa exaltação do mau caráter de muita gente. 

Uma epidemia que dizimou o equivalente a uma cidade de Araraquara (SP) está sendo considerada um evento corriqueiro e passageiro, e não a pior de todas as pandemias desde 1918. Mais do que falta de empatia, é total desrespeito para com os milhares de mortos no Brasil e milhões no mundo.

Confrontados, humilhados e ridicularizados, nem mesmo assim essa gente negacionaista e deliberadamente repugnante buscam de forma desesperada argumentos que justifiquem burlar as leis e desafiar a lógica. Vale tudo, até questionar a ciência e os números.

É desagradável, mas precisamos relembrar que Eric Clapton está, de novo, do lado errado da história. Se 40 anos atrás ele culpou a bebida e as drogas pelos lixos racistas que proferiu no palco, desta vez, sóbrio desde os anos 90, não para usar essa muleta.

Sua elogiada autobiografia, escrita nos anos 2000, serviu para redimi-lo., de certa forma, por conta da prosa fácil e da extrema sinceridade como abordou os principais fatos de sua vida e de como admitiu e se desculpou por muitos erros. 

A recaída, em 2020, é só mais uma mancha em uma carreira acidentada e desastrada, mas desta vez a erosão de sua credibilidade parece irreversível.