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A cena mais importante do filme “Bohemian Rhapsody”, que mostra a carreira do Queen, mas com foco no vocalista Freddie Mercury, é aquela em que a ex-namorada do cantor, Mary Austin, aparece na mansão dele após um autoisolamento para compor canções para o que viria ser o seu primeiro disco solo.

Ela chega em uma noite de chuva no final de uma festança regada a drogas, álcool e orgias homossexuais. Ela pergunta o porquê de não atender o telefone, de não querer falar com ninguém e de rejeitar tocar no Live Aid – convite que ele desconhecia, já que o namorado-empresário-secretário barrava as ligações.

Baseada em fatos reais, o filme mostrou ali o quanto o superastro do rock, badalado e rico, na verdade era um personagem solitário rodeado de aproveitadores e oportunistas, que o isolaram do mundo e dos verdadeiros amigos. Na chuva, vendo a ex-namorada indo embora, Freddie Mercury percebeu o quanto era solitário.

Após 30 anos de sua morte – neste ano ele também faria 75 anos de idade -, a obra do cantor e vocalista máximo do Queen não pode ser analisada sem que a solidão tome a proeminência dos fatos, desde a infância em colégio interno na Índia, o começo turbulento da adolescência em Zanzibar e a rotina de imigrante de classe média remediada em Londres. Se a solidão era a tônica até a explosão musical, a arte sempre esteve à espreita.

São 30 anos sem um dos maiores gênios da música. Todas as biografias são unânimes em retratar o jovem Faroukh (ou Farroch) Bulsara como um garoto tímido, mas determinado, sempre em busca do conhecimento e de informação. 

Culto, era capaz de discorrer sobre história da arte com desenvoltura com apenas 15 anos e espantava amigos ingleses com sua erudição e cultura.

Sua entrada no mundo do rock, de fato, foi tardia, somente os 24 anos quando foi aceito para cantar no Smile, que logo mudaria o nome para Queen em 1970. 

Entretanto, Brian May (guitarra) e Roger Taylor (bateria) ficaram estupefatos nos primeiros tempos como o recém-renomeado Freddie Mercury planejara cada passo rumo à fama. 

A estupefação virou assombro quando o planejamento virou realidade e o Queen se tornou uma das maiores bandas de todos os tempos – e Mercury, um deus da música, um dos símbolos máximos do rock, para o bem e para o mal.

O rock precisava de Freddie Mercury, ou um ser que encarnasse todo o hedonismo e o orgulho de sua majestade. Encarnava os excessos do shows business, mas também a força da arte e do talento natos.

Era brilhante, inteligente, determinado e perfeccionista, ao mesmo tempo em que era mimado, turrão, intolerante, presunçoso e arrogante. 

Sabia que era gênio e finalmente conseguiu viver a vida que sempre quis como astro de rock. Adorava ser bajulado, mas isso nunca era suficiente. 

Exigia ser idolatrado, ser o centro das atenções o tempo todo, mesmo que isso lhe custasse  e muito dinheiro, a ponto de quase ser chutado do Queen quando, de forma escamoteada, assinou um contrato milionário para dois álbuns solo nos anos 80, o que provocou a fúria de Taylor.

Como cantor, era incomparável, reunindo talentos múltiplos no palco, incorporando diversas divas e elementos do teatro, da Broadway e do circo. Ninguém era páreo. Ninguém chegava perto de suas performances, e isso ficou evidente no Live Aid, em 1985, quando o Queen acabou com todos em um show magistral. 

Naqueles 20 minutos de palco, Freddie derrubou David Bowie, Robert Plant (Led Zeppelin), Roger Daltrey (The Who), Mick Jagger (Rolling Stones), Bono (U2) e os então nomes máximos do metal da época, Dio e Bruce Dickinson (Iron Maiden).

Mal sabia o vocalista do Queen que era o começo do fim, já que sabia do diagnóstico de Aids, coisa que revelaria aos companheiros de banda pouco depois e esticaria o segredo até quase a data da morte, em novembro de 1991.

Encarando a doença e a fase terminal com altivez, teve a honra de ainda poder observar os tributos em vida de gente como Axl Rose (Guns N’ Roses), totalmente influenciados pelos maneirismos e movimentos singulares de um verdadeiro mestre do entretenimento.

Assim como pensamos em Jimi Hendrix quando se fala em guitarra, lembramos quase sempre, de forma instantânea, de Freddie quando o assunto é cantor de rock, mas daqueles rocks de arena, exuberante, gigante, que preenche todo e todos ops cantos. 

Freddie Mercury era gigantesco, extraordinário e estrondoso. Sem ele o rock talvez jamais tivesse a exuberância de que necessitava. Teria de ser inventado, a ponto de correr o risco de ficar menos relevante 30 anos antes da derrocada colossal da indústria musical. 

Freddie Mercury foi fundamental para dar ao rock o tamanho que deveria ter e que teve por muito tempo. O gênero musical lhe deve muito e para sempre. 

A solidão do menino Faroukh foi um importante motor para que ele alcançasse a exuberância e expandisse os limites do rock. É dele a primazia de consolidar o gênero como arte, para desespero dos detratores. Definitivamente o rock era arte, e Freddie Mercury, um de seus mestres supremos.