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Para quem tinha saído de uma reabilitação, ele estava melhor do que todos nós juntos. Altivo, sorridente, feliz e sóbrio, Glenn Hughes desfilava pela emissora de rádio certo de que poderia recuperar o seu prestígio. 

Era o começo do inverno de 1994 em São Paulo, mas o cantor insistia m vestir uma camiseta regata. Para ele tudo era uma festa em sua primeira visita ao Brasil. 

Sentiu-se valorizado, paparicado e endeusado por um grupo pequeno de fãs que o acompanhou na turnê promocional do álbum “From Now On”, o seu segundo após o “renascimento”.

Mesmo sendo tratado como um astro, Hughes tinha perfeita noção do que estava acontecendo. Não se cansava de agradecer por tido a segunda chance depois de duas décadas de excessos de drogas e álcool.

 Mesmo dobrado no banco da frente de um Fiat Uno branco, estava encantado por passear por São Paulo e se divertir como há muito não fazia, mesmo tomando hectolitros de água com gás. “Às vezes sinto que perdi muitas coisas na vida, como não ter vindo antes para São Paulo e Rio de Janeiro. A vida teria sido melhor.”

Glenn Hughes, chega aos 70 anos de idade como a grande voz do rock, literalmente. Apaixonado pelo Brasil e pela Argentina, fazia questão de tocar na América do Sul a cada dois anos, certo de que encheria as casas com muita facilidade. Até gravou um EP ao vivo na antiga casa de shows Tom Brasil, em São Paulo, antes da mudança pra Santo Amaro.

O inglês Hughes não é somente um sobrevivente, mas o astro do rock clássico que chega inteiro e com gás na sua idade. A Voz do Rock, apelido mais do que necessário, está cantando mais do que nunca, ao contrário dos amigos e setentões Mick Jagger, Robert Plant, Ian Gillan, David Coverdale e Roger Daltrey.

É um músico por excelência, daqueles que acrescentam demais em qualquer música, em qualquer grupo. Tudo ao redor cresce com sua voz magistral e seu baixo volumoso, criativo e grooveado. Fez tantas participações especiais em discos de amigos ou sendo contratado que é incapaz de fazer uma lista completa.

Menino de ouro do Deep Purple e do rock, era o “garoto que queria ser Stevie Wonder”, nas palavras debochadas de um Jon Lord, ex-companheiro de Purple. 

O tecladista, morto em 2012, comentou em uma mesa de boteco no centro de São Paulo que Hughes tinha tal veneração pela soul music e por Wonder que ajudou a transformar o som da banda em outra coisa – não que fosse ruim -, apressando o fim do Deep Purple. 

“Adoro Glenn, sempre foi interessante tocar com ele, mas o que ele e David [Coverdale] queriam fazer não era rock, nem rock pesado. Nem era Deep Purple, e a entrada de Tommy [Bolin, que substituiu Ritchie Blackmore em 1975] não ajudou nesse aspecto”, disse Lord.

Trapeze: Hughes é o primeiro à esquerda (FOTO: DIVULGAÇÃO)

O interesse pela música negra surgiu na vida de Hughes ao mesmo tempo em que o rock. Enquanto ouvia Beatles e Rolling Stones, o jovem alto e desengonçado, mas com voz divina, calibrava o ouvido com o melhor que Sam Cooke, Ray Charles e os grupos femininos americanos podiam oferecer.

Não era so a voz que era maravilhosa. Os ouvidos eram verdadeiras antenas que captavam tudo com muita facilidade, tanto que não teve dificuldades em começar a tocar guitarra e baixo em várias bandas dos arredores de Birmingham e West Bromwich.

Foram várias bandas e vários ensaios até que conhecesse os caras certos e fosse convidado pra o Trapeze por volta de 1968. Tinha 17 anos e já era considerado uma joia rara, um Steve Winwood de Birmingham (este tecladista ganhou fama aos 16 anos no Spencer David Group).

Ainda tímido, pouco se mostrou no primeiro disco da banda, ainda um quinteto. Tudo mudou em “Medusa”, também de 1970, o segundo disco, com o Trapeze reduzido a um trio. O baixista soltou a voz e encantou o guitarrista Mel Galley e o baterista Dave Holland.

Todo mundo esperava que o disco “You Are the Music… You Just the Band” estourasse, já que o som estava menos hard e mais balançado, com as influências da música negra mais pulsantes e evidentes.

Todo mundo esperava que o Trapeze fosse o próximo grande estouro, mas as coisas estavam demorando. Era a época do glam rock, com david Bowie, Mott the Hoople e Marc Bolan nas alturas, e o Queen na beirada para estourar.

A impaciência do baixista não era tão grande, mas foi preciso apenas uma sondagem dos empresários do Deep Purple para que Hughes mostrasse sua insatisfação. E então o Trapeze implodia e o Purple renascia com uma formação empolgante e novas possibilidades.

Nem mesmo a chegada de David Coverdale como cantor principal desanimou Hughes. Era um mundo novo, uma grande oportunidade e, principalmente, o fim da penúria. Ele farejou que o Deep Purple seria uma máquina de fazer dinheiro.

O primeiro à esquerda: Glenn Hughes com a terceira formação do Deep Purple, no auge de sua carreira (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Foi o auge da vida e da carreira do moleque de West Bromwich (curiosamente, Hughes não torce para este time na Inglaterra, mas para um rival vizinho, o Wolverhampton, o mesmo time de Robert Plant). De 1973 a 1976, foram três álbuns extraordinários com o Deep Purple, muito sucesso, muito dinheiro e toneladas de cocaína, com hectolitros de álcool.

Como tudo no rock naquela época, e na vida de Hughes, a intensidade extrema da vida cobrava preço alto, e com muitos juros. O Deep Purple acabou de forma melancólica em 1976, o amigo junkie Tommy Bolin morreu de overdose naquele final de ano e o baixista se viu desempregado.

A carreira solo não decolou no ano seguinte, com álbum “Play Me Out”, que é interessante, ms tem pouco rock. E então Hughes embarca em uma viagem ao inferno que durou praticamente 15 anos, com perda de prestígio, overdoses e a submersão ao underground. Deixou de ser requisitado e os amigos foram se afastando.

Nesse período, engatou um projeto de relativo sucesso com o guitarrista norte-americano Pat Thrall, em 1982, que rendeu apenas um disco e uma série de frustrações. Cantou três músicas no disco “Run For Cover”, de Gary Moore, de 1985, mas foram muitas as brigas no estúdio com o guitarrista.

Com o projeto Phenomena, dos irmãos Mel e Tom Galley, participou de forma intermitente, mas não era o que deixava feliz. E então um amigo lhe estendeu mão naquele período bem ruim.

O Black Sabbath estava em ruínas e o guitarrista Tony Iommi era o único que tinha sobrado. Queria congelar o grupo e gravar um disco solo. Chamou o velho companheiro de Birmingham e então começou a trabalhar em “Seventh Star”.

Mesmo chafurdando nas drogas e no álcool, Hughes conseguiu gravar as vozes e estava animado com o trabalho, mas a coisa desandou quando a gravadora exigiu que o nome Black Sabbath fosse ressuscitado. Iommi aceitou e Hughes não gostou.

Na turnê de divulgação, no começo de 1986, Hughes estava em péssima forma e a coisa ia mal, a ponto de Iommi concordar em contratar um cantor para ir ensaiando escondido durante a turnê para fazer a substituição. Hughes soube, quebrou o pau e brigou feito, aos murros, com o empresário de Iommi. Depois de quatro shows nos Estados Unidos, Hughes foi demitido e substituído por Ray Gillen.

Era o fundo do poço e Glenn Hughes praticamente sumiu para ressurgir sóbrio, e gordo, por volta de 1991, quando gravou e lançou o segundo álbum solo dentro da série “L.A. Blues Autorithy”. “Blues” não é genial, mas é poderoso e trazia o cantor decidido a recuperar o prestígio e voltar a fazer música.

Quem esperava que Glenn Hughes tivesse recaída na estrada se espantou com o comportamento espartano e firme longe do álcool.

À frente, com a banda Dead Daisies, em 2020 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

E então ele chega a São Paulo, em 1994, sozinho, para divulgar o ótimo “From Now On”. Feliz da vida, passou quase duas semanas entre São Paulo, Santos e Guarujá. Na praia, parecia não querer mais nada na vida.

Uma rápida canja com uma banda cover no Blackjack, antigo bar rock na zona sul de São Paulo, foi o mais próximo que chegou do microfone. Foram duas músicas do Deep Purple e lá foi ele se esbaldar com algumas fãs pela noite paulistana.

O Brasil fez bem a Glenn Hughes, parece que foi um talismã. A carreira foi resgatada e seus shows, em casas de porte médio, passaram a ser concorridos. No Brasil, no entanto, o primeiro show só ocorreu em 1998, em São paulo, no Monsters of Rock. 

“Eu me lembro de você, conversamos naquela rádio legal, mas esquisita”, disse o músico após o excelente show, no meio da tarde quente paulistana. Ele se referia à entrevista dada a este jornalista nas dependências da 97 Rock, antiga FM 97 e que meses depois da conversa, em 1995, mudaria para se tornar uma emissora de música eletrônica.

De cabelos curtos, sofrendo com o calor, não parava de agradecer pela segunda chance que teve e dizia estar na melhor fase, em todos os sentidos, de sua carreira. “A primeira vez que estive no Brasil abriu inúmeras portas para o mundo.”

O século XXI lhe reservaria muitas outras surpresas e inúmeras colaborações. E depois de muitos anos teria o gostinho de ser integrar bandas de hard rock como apenas um dos membros, sem ter de colocar o pseo do próprio nome pra empurrar as coisas – novBlack Country Communion, California Breed e agora Dead Daisies.o CD com Tony Iommi, 

Aos 70 anos de idade, A Voz do Rock não esmorece e continua louvando a “graça” de ter recuperado a carreira e ter tido novas chances de espalhar o seu ótimo astral e sua música maravilhosa. 

Glenn Hughes é daqueles artistas extremamente necessários, que fazem bem por sua existência, com sua música iluminando a nossa alma. Que tenhamos o prazer de desfrutar por muito anos ainda a sua voz ainda perfeita e sua música reconfortadora, ainda mais em tempos de pandemia.