Luis Eduardo Leal*, especial para o Roque Reverso
Se historiadores de um futuro avançado vierem a perder contato com o que ocorreu no hoje chamado Ocidente na segunda metade do século 20 – em especial na principal nação do tempo, os EUA, em meio à contracultura e à marcha pelos direitos civis do início dos anos 1960 em diante -, oxalá que possam encontrar em Bob Dylan o Homero da época.
Como o aedo, Robert Allen Zimmerman cantou para os milênios à frente, embalando em mito, lírica e épica um olhar direto sobre os grandes eventos do tempo: contato direto como o que se tem com o olho da amada, beleza para a agrura. E com uma vantagem comparativa sobre Homero, ao que tudo indica um poeta cego – se é que realmente existiu: Homero pode não ter sido apenas um homem, mas a tradição recolhida e consolidada oralmente por muitos. Em todo caso, “Ilíada” e “Odisseia” são recitações sobre um passado bem distante, já mítico ao tempo do chamado Homero – uma Grécia ainda mais arcaica do que aquela em que ele teria vivido
Para além de discussões historiográficas, Dylan é marco definitivo, e o seu clássico álbum “Highway 61 Revisited” completa 60 anos neste mês de agosto, no dia 30.
O álbum começou a ser gravado ainda em junho, em estúdio da gravadora Columbia em Nova York.
Trata-se de marco não apenas da discografia de Bob, mas também da música popular em todo o mundo, sempre lembrado em listas de melhores registros de todos os tempos.
Foi o sexto álbum do homem – e o título é uma referência à famosa rodovia que liga sua cidade natal (Duluth, Minnesota, no norte do país) às melhores tradições musicais do sul, até o Delta do Mississipi.
Na junção com outra rota, é por lá que a lenda do blues Robert Johnson teria cedido a alma ao demônio – como recriado no clássico filme dos anos 80, a “Encruzilhada”, com Ralph Macchio e Steve Vai, este bancando o quase invencível demônio da guitarra, lembram?
“Bessie Smith, a rainha do Blues, morreu na Highway 61 em 1937, perto de Clarksdale, Mississippi, cidade em que Muddy Waters [conhecido também por uma Rollin´ Stone, de 1950] cresceu e onde, nas décadas de 1910 e 20, Charley Patton, Son House e outros fizeram o blues do Delta”, observa o jornalista Greil Marcus, autor de “Like a Rolling Stone – Bob Dylan na encruzilhada”, um livro inteiramente dedicado às histórias em torno da canção. “Alguns fingiram saber que ‘Cross Road Blues’ (1936), de Robert Johnson, era ambientada bem ali, onde a Highway 49 cruza com a Highway 61.”
Lendas à parte, Dylan talvez seja o maior letrista da música popular em língua inglesa de todos os tempos – e grande repositório de tradições da música de seu país, com um conhecimento que dizem remontar a canções do século 19, do tempo da Guerra Civil, inclusive.
Um conhecimento tão enciclopédico que em algumas ocasiões suscitou a sombra de que derivação musical ou citação inconsciente, no limite, poderiam ser interpretadas como plágio – uma questão levantada até por uma contemporânea também muito talentosa, Joni Mitchell, outro ícone da época.
“Highway 61” começa logo com “Like a Rolling Stone”, o manifesto elétrico da guinada dylanesca, da voz, gaita e violão, em direção a horizontes novos, guitarristicos, vaiados estrondosamente a princípio pelos fãs mais radicais de um rótulo que Dylan afirma jamais ter abraçado como camisa-de-força, o do folk.
Tal guinada musical é saborosamente ilustrada na cinebiografia “Um Completo Desconhecido”, sobre seus anos iniciais em Nova York, onde travou contato com o ídolo pessoal – e da canção de protesto antes que o termo sequer existisse -, Woody Guthrie, lendário ícone da Grande Depressão dos anos 1930, que tinha o violão com a famosa inscrição: “Esta máquina mata fascistas.”
É ali, na gravação da Highway revisitada, que Al Kooper, um músico que se notabilizaria no Blood, Sweat & Tears, entra de repente no estúdio e, sem qualquer chance de tirar o lugar de Mike Bloomfield, referência da guitarra para Dylan, pega o colete de organista e define, meio que no improviso, uma das marcas daquela canção de seis minutos, jamais longos.
Conforme observa Marcus no livro, entre tantas ressonâncias possíveis para uma canção iniciada com um tradicionalíssimo ‘era uma vez’, como uma pedra que rola pode ser interpretada como uma canção da libertação: “de família, autoridade, governo, trabalho, religião, mas sobretudo de si mesmo”, enfatiza o jornalista.
Bruce Springsteen, por sua vez, teria dito que a primeira vez em que ouviu o clássico de Dylan foi no rádio do carro, com a mãe, e que a batida inicial na caixa da bateria foi como se alguém tivesse aberto a porta de sua mente.
Como músico e homem das letras – vencedor do Nobel de Literatura em 2016 -, Dylan continuaria a manter, muitos anos depois da década de 1960, a inacreditável capacidade (um talento extraordinário, diria genial) de contar longuíssimas histórias em forma musical: uma teia informacional de versos extensos e difíceis de cantar, praticamente sem repetições e mesmo com diálogos, como “Hurricane”, de 1975, incluída no disco “Desire”, de 1976, e com mais de oito minutos de duração.
Nesta canção, Dylan narra a história do famoso pugilista de mesma alcunha, Rubin ‘Hurricane’ Carter, injustamente preso em 1966 por homicídio, e que só recuperaria a liberdade muitos anos adiante, na década de 1980 – a absolvição final viria apenas em 1985, quase 20 anos depois, quando Hurricane já estava com 48 anos…
Ali, Dylan reiterava uma marca pessoal que o acompanhou desde o começo, no princípio dos anos 60, então em seus ‘early twenties’ ( Bob nasceu em 1941): a de ser uma antena do tempo, um poeta altamente subjetivo, mas totalmente envolvido com as questões mais candentes de sua época. Os exemplos nesse tom são inúmeros, e seria um tanto ocioso enumerá-los. Mencionarei apenas um: a linda canção “The times they are a-changin’”, de 1964.
Um trecho de humilde livre tradução nos faz lembrar, sempre: “Admita que as águas em torno de si subiram, e admita o mais rápido, pois será ensopado até os ossos; se vale a pena salvar o seu tempo, é melhor que você comece a nadar logo, senão afundará como uma pedra, porque os tempos estão mudando.”
Bob Dylan para sempre – grato por tudo! No início do século 21, da forma mais singela – como apenas os grandes criadores sabem fazer, seja um cantor americano do século 20 ou um escritor russo do século 19 -, ele diria apenas: “Eu me vejo nos Outros.”
Para comemorar as seis décadas de “Highway 61 Revisited”, o Roque Reverso descolou vídeos no YouTube. Fique inicialmente com um vídeo de 1965 com Dylan tocando “Like a Rolling Stone” ao vivo com a Paul Butterfield Blues Band e Al Kooper no Newport Folk Festival.
Depois, fique com Dylan tocando “Tombstone Blues” ao vivo no “Acústico MTV” de 1995. Na sequência, assista a um vídeo ao vivo recuperado de 1966 com Dylan executando “Ballad of a Thin Man”. Veja também um vídeo de 1995 ao vivo de “Desolation Row”.