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O rock vende e traz credibilidade. A frase é de um um publicitário paulistano bem-sucedido que analisou, rapidamente, a pedido do Combate rock, as recentes propagandas televisivas com trilhas sonoras roqueiras. A mais recente foi uma marca de geladeiras que não teve pudor em destruir ‘Paint It Black”, do Rolling Stones, em versão medonha.

Para o profissional, que preferiu não ter o nome divulgado, os filmes promocionais miravam um público mais velho, maduro e com bom poder aquisitivo, que facilmente reconheceria as canções executadas e rapidamente as associaria aos produtos.

Por isso um grande banco ousou arrebentar a reputação de “Revolution”, dos Beatles, aos associá-la à “revolução tecnológica” de um determinado produto financeiro. O rock é sólido, consistente e empresta credibilidade às marcas.

Mas outros gêneros musicais não têm esse poder? “Não”, respondeu na lata o publicitário. “O rock tem essa coisa de perenidade, clássica e duradoura. O pessoal mais velho e mais bem informado valoriza esse tipo de característica. Mesmo propagandas com rocks de bandas mais recentes têm esse valor agregado.”

E então seguiremos vendo clássicos do rock sendo estraçalhados em versões nojentas atreladas a propagandas atreladas a comida de cachorro, pneus, refrigerantes e produtos de tecnologia.

Incomoda, e muito, quando vemos que oras de arte eternas são usurpadas e apropriadas pelo mundo corporativo para servir de trilha sonora de todo o tipo de lixo – e pensar que “Revolution”, uma música política e cética a respeito das revoluções, foi deturpada em uma propaganda de banco dos mais capitalistas e com “políticas” das mais questionáveis…

“Paint It Black”, também uma canção político-social emblemática, foi despida de seu teor original e serviu e fundo musical suave para embalar uma narrativa tosca e pobre para vender geladeira, como se uma coisa tivesse a ver com a outra.

Incomoda assistir a esse tipo de apropriação cultural. Talvez nem tanto como no caso da canção dos Beatles, que embala uma propaganda de banco que fala das maravilhas da (r)evolução tecnológica de seus produtos.

Também é estranho ver um filme que mostra como o novo automóvel caro “proporciona” sensações mágicas ao deslizar por estradas de primeiríssimo mundo. E tudo isso embalado por alguns dos melhores rocks já compostos e gravados.

Nada disso é novidade no mundo dos negócios. Já se vão mais de 30 anos desde que grandes hits estão a serviço da propaganda para vender o que quer que seja por mais que choque os puristas ou radicais da pureza artística.

Hits de todos os calibres e de quase todas as bandas serviram de trilha para todo tipo de filme publicitário, acabando com a ingenuidade de quem imaginava a arte a serviço dos mais nobres propósitos – não que a publicidade não seja, mas é que sempre há o risco de banalização…

Escutar uma canção que fala de revolução, ainda que de forma sarcástica e desiludida, servir de música de apoio a propaganda de banco? Será que ninguém percebeu a “inapropriedade” da escolha, na suprema contradição da peça publicitária? Isso para não falar na versão absurda e ridícula da regravação, que transformou a emblemática música em uma trilha inodora, insípida e incolor, com uma suavidade típica das vergonhosas canções de elevador e de consultórios dentários…

Na peça que exalta a “magia” de um novo utilitário esportivo, uma versão desprovida de emoção para uma música muito boa, “A Kind of Magic”, do Queen. Crianças felizes no banco traseiro se agarra em meio a risadas enquanto os versos são disparados de forma irritante, com uma urgência que a versão original não tem.

Os Beatles no clipe de divulgação de ‘Revolution’ (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Descaractização

Com que autoridade publicitários analfabetos e desinteressados destroem clássicos do rock de forma a transformá-los em meros acompanhamentos destituídos de alma? Como ousam conspurcar versos icônicos e estrofes apenas para embalar o passeio de um carro qualquer ou mostrar raios luminosos indo em direção ao sol?

Claro que é uma discussão embalsamada e sem a menor chance de comover o “mercado’ diante da total falta de comprometimento com a arte e da preocupação excessiva com os “negócios”. Afinal de contas, o mesmo banco da citada propaganda cooptou um astro como Gilberto Gil para compor e cantar uma trilha para divulgar as maravilhas dos “serviços digitais”. Mas deveria haver limites.

Um banco falar em revolução, seja ela qual for, e usar “Revolution” como tema soa como provocação ou deboche. O mesmo se pode dizer ao reduzir uma canção que fala da magia da vida a uma mera trilha para um filme que exalta o conforto do banco traseiro de um carro caro, e nada mais do que isso.

Se a destituição do sentido artístico de uma música como “Revolution” passa batida, sem que não gere incômodo algum, é sinal de que a arte está definitivamente sepultada pelo ambiente de negócios e que nenhuma reverência bandas e seus hits merecem.

É uma constatação anacrônica e talvez não faça sentido algum hoje, diante do mundo moderno e dos “novos tempos”, mas ver músicas maravilhosas reduzidas a jingles desalmados e desconstruídos é doloroso. Remete à nostalgia, em atitudes de gente como Bob Dylan e Neil Young recusavam autorização para que sua música fosse usada como trilha de programas de TV, comerciais ou convenções políticas. Muitos outros também fizeram isso.

Algumas canções são sagradas. São imexíveis e deveriam ser respeitadas sobretudo por quem detém os direitos, já que a publicidade não respeita nada em busca do lucro.

O desalento de escutar “Revolution” emoldurar propaganda de banco é saber que nenhum tipo de revolução verdadeira e que transforme alguma coisa será empreendida por uma geração que está se acostumando a não contestar e a considerar “revolução” como uma palavra fora de moda ou coisa de “comunista”.