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A música cura, mas também redime e nos impulsiona. No período sombrio em que lutamos contra uma pandemia mortal e um governo que depreda instituições e destrói esperanças, os sons da vida chegam para resgatar a autoestima e inserir sopros de otimismo e esperança. E então as viagens começam.

Nunca foi tão necessário ouvir música boa, que consiga incomodar, chacoalhar ou influenciar de alguma forma. E a música que nos toca está aqui, bem pertinho, do nosso lado, fundamental para nos impelir a seguir em frente. 

Em termos sensoriais, é um bálsamo ter o privilégio de ouvir o trabalho que dois mestres que agem sorrateiros para nos pegar desprevenidos e nos encantar. 

As canções de Edu Gomes nos embalam e nos permite entender o mundo ao nosso redor com sutileza e elegância. As de Tony Babalu nos remetem aos tempos dourados em que a pandemia era coisa do passado e a burrice era algo feio e combatido – como as coisas mudaram para péssimo em tempos bolsonaros…

 “Ventura”, o disco de Gomes deste ano, espalha um pouco de paz para os espíritos atormentados que não anseiam por algum tipo de normalidade. É um guitarrista de timbre sutil e cristalino, com fraseados que desafiam os ouvidos e os sentidos.

Ex-integrante da excelente banda Irmandade do Blues, há muito enveredou pelo campo sensorial e das emoções. A série “Concertos da Cura”, em parceria com o admirável tecladista Adriano Grineberg, evidencia um lado mais sofisticado e abrangente, onde a new age encontra os sons profundos da alma.

Essa experiência foi transposta com sucesso para a carreira solo em seus três discos anteriores, “Imo”, “Âmago” e “Metamorfose”, este último uma coleção muito bacana de temas mais voltados para o blues.

“Acho que ‘Ventura’ ficou mais pesado do que eu imaginava”, diz o músico ao comentar o novo disco. É uma primeira impressão, mas ele tem um pouco de razão. “Metamorfose” é uma obra mais reflexiva e climática. “Ventura” é mais quente e intensa, empurrando o ouvinte para outros tipos de sensações.

A conexão com a música norte-americana é evidente desde a escolha dos timbres até a textura extraída de solos encaixados de forma luminosa. Dá para perceber as influências de gente como Pat Metheny, Joe Pass e John Scofield, mas também do britânico John McLaughlin e sua Mahavishnu Orchestra, assim como os arranjos e efeitos algumas vezes estridentes que lembrar a fase jazz de Jeff Beck.

A grande variedade de timbres embeleza os arranjos simples e pitorescos, como uma verdadeira janela para o mundo de suas composições, carregadas de sabedoria e mística. “A pandemia influenciou diretamente nas minhas composições. Em ‘Metamorfose’ eu estava na fase de entender o que acontecia. Agora é olhar para frente e seguir.”

“Aventura” abre o álbum e segue a direção mais pesada que Gomes citou, quase hard rock. É uma declaração de intenções, um olhar diferente e mais “quente” para o futuro e para a busca de uma eventual normalidade.

“Êxtase” e “Despertar” buscam o blues e o jazz como inspiração aliados a arranjos climáticos em busca de sensações mais calmas, algo que em que Gomes é especialista. O rock progressivo permeia os temas, assim como os ecos de McLaughlin e sua guitarra transcendental.

E podemos considerar que essa “transcendentalidade” fica evidente em “Esperança” e “Impressões”, em que a guitarra passeia com serenidade e solidez em meio a arranjos típicos do rock e jazz fusion dos anos 70.

Na faixa “A Criação”, Edu Gomes incorpora as vocalizações da cantora Sonia Santhelmo e o resultado é ótimo, com o clima new age se misturando à sutileza e suavidade encontradas na obra do grupo inglês Renaissance e sua venerável vocalista Annie Haslam.

“‘Ventura’ é o resultado de um segundo ano na pandemia da covid-19. É um misto de esperança e incertezas onde mais uma vez, as composições são o norte para todos, que se sentiram livres para criar e somar. Pelo motivo desse ‘aprisionamento’, o trabalho traz um espírito de aventura e vontade de voar”, analisa o músico.

“No Quarto de Som…” é o novo EP do veterano Tony Babalu, um músico que se confunde com a própria história do rock nacional desde os anos 70. 

Exímio guitarrista, transita entre e o rock e o jazz com uma facilidade irritante, da mesma forma que imprime tamanha elegância na execução de seus trabalhos. É um estilista, daqueles que encantam e fazem com que, imediatamente, as pessoas parem o que estão fazendo para prestar a atenção no som.

No novo trabalho, é difícil não associar seus fraseados e sua dinâmica com a de outro monstro da guitarra, o inglês John McLaughlin, criador da excelente Mahavishnu Orquestra. Sobram sofisticação e competência nos cinco temas do EP.
O melhor exemplo é “Recomeço”, que viaja pelo jazz rock de maneira de maneira sublime, com solos vigorosos e o apoio de uma melodia bela e cativante.

“Lara” e “Tropical Mood” exaltam uma brasilidade que foge do lugar comum de inspiração bossanovista: são sons resplandecentes, intensos e que emanam brilho. São quase fulgurantes, que extrapolam os limites dos gêneros musicais.


“Francisca”, por sua vez, exala uma delicadeza que remete imediatamente a um tema como “Riviera Paradise”, de Stevie Ray Vaughan. É intimista, como a canção pede – uma homenagem à mãe de Tony -, com uma forte carga emocional.

O trabalho atual de Tony Babalu é um bálsamo em tempos tristes de isolamento e pandemia. Embala um sentimento de pertencimento e perseverança que espantam pensamentos negativos e mostram novos caminhos. É o típico som que cura, ou que ajuda a curar.