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 Marcelo Moreira



Entre as inúmeras deformações que a era bolsonara causou na triste sociedade brasileira, uma foi aprofundada pela pandemia: a desumanização, com a progressiva queda da empatia em toso os níveis.

Em tempos de desespero e falta de trabalho, a guerra de egos chega agora ao nível mais básico da atividade musical, que é a disputa por trabalho em meio a um terreno desolado e devastado.

Professores de instrumentos musicais ou mesmo de teoria, com anos de formação e atuação no mercado, reclama muito nos últimos tempos dos músicos profissionais que “invadiram” a seara das aulas, sobretudo online. 

As queixas são tão tão severas que alguns cogitam acionar a lei contra os músicos, alegando que lecionar, mesmo na questão musical, requer uma formação específica.

Claro que é um sintoma temporário de um mercado sacudido por uma tormenta, que está desorganizado e que não prevê uma normalização no curto prazo.

Por mais que alguns professores possam até ter alguma razão na queixa por conta do aumento da concorrência, não deixa de soar como desumano o “combate” aos supostos “ilegais”  no ensino da música. 

Em tempos normais, jamais teríamos a chance de aprender algo com músicos consagrados, mas necessitados de serviço em tempos em que os shows, em sua maioria, seguem parados. É uma oportunidade e também uma necessidade. 

Parece uma reserva mesquinha de mercado de trabalho no ensino musical, em que fica quase impossível comprovar que há algum tipo de lesão econômica na chegada, mesmo que temporária, de músicos profissionais sem trabalho ao ensino online.

Um professor de guitarra exaltado compara os instrumentistas que chegam agora para dar aula aos “camelôs” que “infestam” as áreas comerciais e “prejudicam” os comerciantes que “pagam impostos”.

O que esse idiota não leva em consideração é que ninguém, se torna camelô porque quer.O Brasil é um país em constante crise econômica desde os anos 50 e se aperfeiçoou em expulsar ao longo das décadas milhares de profissionais do mercado de trabalho.

A pandemia de covid-19 agravou muito a crise de 2016, transformando esse período em que vivemos no pior de todos os tempos em termos de economia frágil. 

É a pior crise econômica da história do Brasil desde a descoberta, em 1500, e soa extremamente cruel e desumano execrar vendedores ambulantes sem a menor chance de obter algum tipo de trabalho no mercado formal. E soa quase criminoso incriminar músicos profissionais que tentam ganhar algum trocado ensinando alguma coisa a quem quer que seja.

São tempos muito difíceis e que tendem a ficar mais complicados com a total falta de empatia em um mercado depredado por inúmeros motivos e destroçado de vez pela pandemia. 

Esses músicos profissionais, muitos dos quais provavelmente estariam em turnê pela Europa ou pela Ásia atualmente, certamente não queriam – ou não tinham planejado – dar aulas online neste momento. Sem alternativas, e com as contas se avolumando, por que negar a possibilidade temporária de ensinar alguma coisa pela internet?

Disputas fratricidas são lamentáveis e não ajudam. Estimulam um canibalismo como o que estamos vendo em diversos segmentos, com “brigas de morte” por nacos de algum recurso que está sobrando aqui e ali. 

Se o mar não está para peixe e falar em união pode soar inapropriado no momento, que ao menos haja respeito e solidariedade em relação à penúria que afeta diversos profissionais da música. 

Extirpar o ódio será uma das tarefas mais árduas de nossa sociedade quando o bolsonarismo for varrido. E essa luta precisa começar agora.