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Um homem perigoso, provavelmente o mais perigoso do mundo. Essa é apenas uma das descrições que de um jovem artista marcado pela polêmica e pela vontade de viver como queria sem maiores preocupações. Quer ato mais revolucionário do que isso em plena ditadura militar?

Ney de Souza Pereira era intimidador porque acreditava em si mesmo e no poder do livre arbítrio e, principalmente, da liberdade.

Quando virou Ney Matogrosso, tornou-se um furacão que devastou corações e mentes em uma terra de bugres que tinham medo de comunistas, de mulheres fortes e da sexualidade à flor da pele.

Nunca houve nada parecido como Ney no enfrentamento de uma sociedade conservadora que se achava evoluída, mas que era arcaica a ponto de temer liberdade e amor ao extremo. Por que ninguém ousou contar por completo essa história?

Nunca foi fácil abordar um personagem exótico e fascinante capaz de perdurar por décadas e manter a aura de culto, inovador e reservado por mais que seu comportamento, muitas vezes, indicasse o contrário. Qual o Ney Matogrosso que merecia ser biografado?

De fato, a tarefa era intimidadora, assim como o personagem o fora durante a maior parte de sua vida – seja para sobreviver artisticamente, seja para manter a independência pessoal. Aos 80 anos, ele merecia um texto definitivo. E finalmente teve o que merecia.

O jornalista Julio Maria, do jornal O Estado de S. Paulo, é uma espécie rara de escritor que une o jornalismo com a história sem recorrer a malabarismos ou truques literários. Bastam os fatos e a aplicação de doses sensatas de análise e uma interpretação concisa e precisa dos bastidores, como ocorre em “Ney Matogrosso – A Biografia” (Ed. Companhia das Letras).

Sua obra a respeito de Ney realçou esses talentos, que o colocam na alta prateleira ocupada por gente como Ruy Castro e Fernando Morais, outros exímios jornalistas que usam a interpretação como grande recurso para contar bem uma história.

Assim como aconteceu com Elis Regina, outra figura que mereceu a grande atenção de Julio Maria, Ney Matogrosso sai, ao final da leitura, maior do que antes. Não é pouca coisa.

Ney Matogrosso em 1976 (FOTO: REPRODUÇÃO/CAPA DE LIVRO)

A dimensão do personagem é humana, mas a história é muito boa. Bem contada, claro que melhora, mas o essencial é que Ney Matogrosso, em sua improvável trajetória de jovem deslocado e incompreendido que evoluiu para um artista transgressor e contestador, ganha ares de super-herói. Como não admirar u personagem desse quilate?

A demora compensou, e Ney Matogrosso emerge como um dos artistas fundamentais da música e da cultura do Brasil, um ser que fez a transição do mundo arcaico dos anos 60 e 70 imersos na ditadura militar para um mundo que precisava se modernizar na marra pra diminuir o abismo em relação às sociedades.

Nas mãos de um biografo competente e ousado, a história de Ney se transforma na própria narrativa da transformação – e evolução – da área do entretenimento no Brasil. É o rapaz que teve a coragem de enfrentar mundos hostis para garantir o seu direito, e o de muitos, de ser o que quiser, com quem quiser e como quiser.

Liberdade é uma palavra que casa muito bem com a personalidade forte, firme e triunfal de Ney Matogrosso, até porque, desde sempre, nunca lhe restou opção a não ser batalhar pelo direito de ser o que sempre foi, por mais que sua androginia fosse um murro na cara do conservadorismo machista, misógino e altamente homofóbico.

O lado humano predomina no texto, o que não torna o livro menos fascinante, mas é a simbologia da superação de muitos obstáculos que torna a leitura fundamental.

Por mais que queiramos e tentemos, não há como afastar os contorno épicos da história, mas é algo que surge naturalmente, e com o devido equilíbrio.

Nem sempre Ney Matogrosso precisa ser explicado, mas é muito bom quando temos a sorte de ter alguém que consegue interpretá-lo. Como um ser enigmático, não deve ter facilitado as coisas, o que só aumenta os méritos da obra.

Ele brilha na vida e nas páginas, carregando sempre as palavras liberdade e coragem como armas e lemas, seja nos picos de sucesso, seja nos tombos e tropeções de uma vida acidentada e intensa, mas sobretudo fascinante.

Se na sua história de vida o termo busca da felicidade é sinônimo de perseguição do direito de ser livre, então muito poucas as chances de encontrar trajetória tão ou mais edificante.

Exemplo? A preocupação de Ney sempre foi maior do que isso. Pela escrita de Julio Maria, objetivo ficou explicitado desde a infância: viver e celebrar a vida, algo que o menino Ney perseguiu o tempo todo. E uma vida plena e extraordinária precisa ser celebrada – e ninguém faz isso melhor do que cantor que é sinônimo de alegria da vida.