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Marcelo Moreira



“Lembra daquela cristaleira que você encostava para massacrar aquele idiota fascista ouvindo punk francês? Quer ela para você? Precinho simbólico…”
A mensagem estourou no final da noite de domingo, após a aquela que teria sido a última vez do bar antes de novo período de restrições pesadas por conta da pandemia.
O vírus não poupou o recinto acanhado, mas acolhedor, que sempre respirava rock, blues, política, democracia e futebol – era proibido falar mal do Santos…
Todos os amigos sabiam o que aquilo significava, mas ninguém queria acreditar. Não havia entre nós alguém bem o suficiente na pandemia para abater a alta dívida de aluguel. 
Os poucos funcionários que restaram estava resignados e se dispuseram a ajudar, mas não deu. Restou fechar o bar pela última vez, sem a música ao vivo, coisa inexistente há mais de ano, e iniciar imediatamente a “partilha” do que sobrou e vender o que dava.
Ricardinho me ofereceu outra relíquia, uma geladeira em formato de jukebox, um dos itens mais vistosos e cobiçados da casa. O baixo poderoso da Rickenbacker já tinha destino, um colecionador argentino que passava meses no Brasil caçando oportunidades para revender em seu país.
E lá se foi mais um pé sujo sem nome, mas característico e muito adorado na zona leste de São Paulo. Ricardinho o herdara de um tio, não gostava daquilo, mas se afeiçoou à clientela do bairro. 
Nunca revelou se vivia do que ganhava ali – provavelmente não -, mas se divertia com a galera. “Fiz questão de transformar essa esquina em um canto diferente e diferenciado na cidade. Feio por fora, mas elegante e sofisticado por dentro, com cerveja importada, música boa e cantinho para a literatura. Achei que ia durar seis meses, e estiquei para 16 anos.”
O bar sem nome era conhecido como Bar da Vila, ou Bar do Boy, sendo que nem sabe quem seria o tal boy. “Quando herdei já tinha esse nome, entre outros. Meu trio nunca se dignou a me dizer quem era ou foi. Que diferença faz?”
A covid-19 levou alguns parentes, alguns clientes e muito da alegria. Sem faturar ficou inviável manter o bar. “Parias lotadas, festas clandestinas, mercados cheios, mas justamente os meus clientes resolveram, seguir a risca os vários lockdowns, lamentou Ricardinho.
Prestes a reativar sua carteira de corretor imobiliário e trabalhar com dois primos, também vai ajudar nas várias campanhas de arrecadação de dinheiro para os muitos músicos profissionais que conhece e que estão passando por muitas dificuldades financeiras.
Com bons contatos em vários segmentos, elaborou uma carteira de instrumentos musicais à venda para as tais campanhas. “Tubarões do mercado, da rua Santa Ifigênia e da Teodoro Sampaio estão de olho, mas jogam o preço lá embaixo e fazem de tudo para atrapalhar as vendas pelo preço real. Como pode isso acontecer em plena pandemia? Que todos morram asfixiados no inferno!!!!!!!!!!!!”
Assim como bares e locais de entretenimento, artistas e profissionais do segmento estão sendo asfixiados e estão morrendo.

Mais de 500 entidades paulistas ligadas à área da cultura e das artes divulgaram uma petição pública declarando Estado de Emergência no setor em São Paulo.

No documento, os artistas diagnosticaram que se alcançou uma “situação-limite no Estado, com a iminência de um colapso total na área cultural, que perdeu ‘quase tudo’, inclusive a paciência”.

“Vivenciamos um dos momentos mais críticos para a Cultura em nossa história, com milhares de trabalhadores e trabalhadoras do setor desempregados e abandonados”, segue o texto. “Além do desemprego, artistas, técnicas e técnicos, produtoras e produtores culturais, estão desamparados, adoecendo, morrendo de covid-19 e outras enfermidades. Colegas se contaminam pela necessidade de se expor para seu ganha-pão emergencial e cumprir prazos absurdos impostos pela Secretaria de Cultura”, diz o documento.

A petição aponta “absoluto descaso com técnicas/os que trabalham nos bastidores dos eventos e espetáculos, todo o pessoal ‘da graxa’, que não foram devidamente atendidos pela Lei Aldir Blanc, como necessitavam. Ao contrário, o valor vergonhoso oferecido a estes profissionais essenciais e imprescindíveis só os deixou tão desamparados que muitos foram obrigados a sobreviver, com suas famílias, por meio de cestas básicas entregues por amigos, cooperativas e sindicato, associações comunitárias, através das tantas campanhas solidárias”.

Já são várias as análises e denúncias de desvios de funcionalidade e critérios obscuros na parca distribuição das verbas da Lei Aldir Blanc. O novo auxílio emergencial anunciado pelo (des)governo atual? É uma mera esmola para os mais pobres, o que dirá então para músicos e artistas.

Crise sem precedentes na história da humanidade e na área da cultura, não existem soluções à vista enquanto não houver vacinação em massa e noções cada vez mais rigorosas de isolamento social. 
Com quase 340 mil mortes em um ano e 4 mil ao dia, com o colapso total do sistema de saúde, não há como alimentar esperanças ou buscar perspectivas. Continuaremos a ver nossos amigos e parentes morrendo e músicos vendendo seu equipamento por ninharia para comer hoje.
Enquanto não houver consciência e punições muito mais severas, continuaremos participando da divisão de espólios de bares bacanas e de patrimônios pessoais ricos em instrumentos e em histórias.
Shows, turnês e atividades artísticas diversas vão permanecer apenas nas agendas, mas sem datas, sem esperança e nenhum retorno. É um mundo que mudou rapidamente, e que promete manter a devastação por muito, mas muito tempo.