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 Marcelo Moreira

A única defesa dos racistas para confrontar a campanha “Black Lives Matter” (vidas negras importam) é contra-atacar com o “todas as vidas importam”, em uma tentativa estapafúrdia de “cancelar” o antirracismo.

A cada cidadão morto pela polícia nos Estados Unidos e no Brasil a claque branca de classe média e classe média alta saliva de raiva quando exposta aos óbvios e quentes assuntos relativos a racismo direto e estrutural, desigualdade social, genocídio de pobres e todos os males que afetam a parte mais desfavorecida da sociedade.

Seria demais pedir que essa parte da população, a que tem culpa quando ouve o termo racismo, se dignasse a destinar alguns segundos de reflexão antes de defender o indefensável e achar que não existem motivos para que surjam movimentos como o Black Lives Matter”.

O racismo incomoda porque dói. Vai direto na ferida aberta do cidadão branco “de bem” que ignora o mendigo negro no calçadão da zona sul carioca ou da avenida Paulista; e que adora espantar meninos paupérrimos e malvestidos chamando-os de “trombadinhas”, gíria nefasta para designar menores infratores nos anos 80.

Em um post no Facebook, o colunista de O Globo Lauro Jardim mencionou um recado que os ex-lutador de boxe Muhammad Ali (Cassius Clay) deu a Martin Luther King Jr, o pastor dos direitos civis,  certa vez: “Cuidado com os brancos”.

A frase é um dos pontos centrais contidas na biografia “Muhammad Ali: Uma Vida”, de Jonathan Eig, que será publicada em breve no Brasil. O recado de Ali a King está registrado em uma escuta telefônica realizada pelo FBI, a polícia federal americana, e ocorreu em 1964, quando o boxeador manifestou seu apoio ao pastor.

Foi o que bastou para que a matilha de cães hidrófobos da direita burra (pleonasmo?) e do bolsonarismo chamassem o jornalista de “comunista”, de “comprado com uma narrativa pronta de esquerda” e outros lixos mais.

Consequência direta da indigência intelectual vomitada do Palácio do Planalto e de plataformas imundas do bolsonarismo, o negacionismo do racismo não conhece limites, assim como os da ciência e do bom senso.

A acusação de racismo incomoda essa gente porque ataca diretamente um dos pilares da manutenção da desigualdade em nossa sociedade: a perpetuação de um supremacismo baseado em desinformação e incitação ao conformismo.

Impossibilitados de acabar com o antirracismo e com o antifascismo na base do autoritarismo, resta aos grupos inspirados no fascismo apelar para a ideologização de uma causa que é um direito humano mais básico – vamos lutar pela igualdade, mas desde que eu e meu grupo sejamos mais iguais do que os outros.       

A denúncia da existência do racismo desnorteia porque questiona a base da pretensa superioridade moral de uma sociedade que finge valorizar a meritocracia para manter os velhos privilégios de sempre e apartar a maior parte dos concorrentes, em uma reserva de mercado em todos os níveis.

O racista surta quando o dedo lhe é apontado. Vê manipulação ideológica e informativa em situações em que apenas se constata o mais puro e simples racismo. 

Os comentários no post do Facebook de Lauro Jardim são o melhor exemplo de uma branquitude estúpida incomodada com uma “narrativa pronta que se presta tão somente a acusar os brancos de classe média que não são de esquerda”. 

Ou seja, o próprio comentarista branco racista se assumiu racista e de direita, a mesma direita conservadora de inspiração fascista que sempre lutou pelo aprofundamento da desigualdade e pela existência de castas, onde os mais pobres sempre seriam os negros e seriam cada vez mais pobres, uma manutenção da sociedade escravista em outros moldes.

Houve ainda um estúpido que ousou acusar o jornalista de O Globo e o jornalismo, como um todo, de incentivadores de uma divisão na sociedade e de estimuladores de violência, “desejando convulsão social nos moldes terroristas das arruaças do ‘Black Lives Matter’ nos Estados Unidos”. E tudo isso em um post em que apenas é relatado o lançamento de uma biografia de um dos maiores boxeadores de todos os tempos.

Para o estúpido que falou em “divisão social”, relembro das declarações de Ice-T, rapper norte-americano e ator de cinema que também é vocalista da banda de heavy metal Body Count.

Body Count: Ice-T é o segundo da esq. para a dir. (FOTO: DIVULGAÇÃO)

No começo de 2020, divulgando CD “Carnivore”, o cantor e ativista negro Ice-T falou sobre racismo, violência policial nos Estados Unidos e o movimento “Black Lives Matter”, entre outros assuntos, a uma emissora de rádio.

“Quase sempre me perguntam a respeito do ‘problema’ envolvendo a música ‘Cop Killer’ [“Assassino de Policiais], do Body Count, lançada há 26 anos. Foi banida de várias rádios. Fomos acusados de incitar a violência social. E o que dizer dos assassinatos de negros nas comunidades, dos espancamentos e prisões arbitrárias e do racismo explícito em todas as áreas da sociedade? Que nome damos a isso? Que tipo de ‘incentivo’ podemos caracterizar? Por que caracterizar a violência em um só lado da história?”, bradou o artista.

A existência do racismo incomoda a grande maioria, mas pelos motivos errados. O racismo deveria envergonhar e forçar mudança de hábitos e atitudes, mas apenas coloca os racistas na defensiva, ainda que não por muito tempo.  

A denúncia da existência do racismo atrapalha a noção de mundo idílico propagada pela branquitude comodista e confortável em seus bairros bons de classe média. 

Falar em racismo faz essa mesma branquitude ficar brava com a existência de uma periferia que de vez em quando aparece para cobrar a conta.

Muhammad Ali estava mais do que certo quando comentou com Martin Luther King Jr em 1964: deveria ter muito cuidado com os brancos – desde sempre e até hoje, em todos os momentos.

Clique aqui e leia o post de Lauro Jardim e os lamentáveis comentários racistas de racistas no post.