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 Axe of God* e Marcelo Moreira

A primeira vez que ouvi uma música da banda americana BellRays eu pirei. Era muito pesada, intensa e com uma guitarra que rugia. Era punk, era hardcore, era soul, era tudo. Nem me lembro direito qual era a canção.

Foi no comecinho do século e era um som mais antigo. Era rockão dos bons e a voz de quem cantava era extraordinária. Adorei saber que era uma mina cantando, uma negra de responsa, uma voz forte e gigante.

Apresentei para alguns amigos algumas das músicas, e a galera adorou, com a mistura de sons e gêneros. Era tudo rock pesado. Mas quase todos torceram o nariz assim que souberam que Lisa Kekaula, a cantora, era uma “negona” que cantava rock, blues, soul e muita coisa mais.

“Estranho essa mulher cantando rock”, disse um dos meus amigos fã de Metallica. Mas não era bom quando você ouviu pela primeira vez? “Mais ou menos, não disse que adorei.” Disse sim, todo mundo ouviu. O problema é por a cantora ser negra ou por ser mulher? Ou por ser mulher negra?

E então foi que fui apresentado ao conceito de cancelamento quase 15 anos de ser inventado. BellRays deixou de ser legal, da mesma forma que Living Colour nunca foi legal. “Sozinho cheio de fru fru, guitarrazinha coloridinha, isso pode servir para os caras do funk, não para o rock.”

O diferente incomodava, mas não entendia o porquê. A música era boa, mas foi só os caras verem a “imagem” do quarteto negro pra detonarem. Como se o rock tivesse cor, seja na pele ou na guitarra…

Até então eu resistia a admitir que era racismo. Para mim era apenas um preconceito bobo de gente que só escuta uma banda só ou o mesmo subgênero. Ok, cada um na sua.

Eu já tava na faculdade de administração – depois eu ainda me formaria em psicologia, onde me senti em casa, com uma galera mais inteligente – e logo deixaria de frequentar aqueles meus amigos de infância e adolescência.

Nunca consegui abandonar muito o sectarismo musical, só ouvia quase rock e agreguei uma turma de roqueiros mais antenados, mas que ouviam outras coisas. E aí aprendi o que era jazz e funk e rhythm and blues e Stevie Wonder e Funkadelic e Al Green e Aretha Franklin e Supremes e PP Arnold…

Demorou para cair ficha e perceber que o racismo e o preconceito dominavam vários ambientes roqueiros, inclusive aqueles em que eu me inseria na faculdade, meus “novos amigos”. Todos adoravam James Brown e Jimi Hendrix, mas tinham reticências em relação aos negros no rock. Como assim?

Uma coisa é constatar que os negros se tornaram minoria no rock a partir dos anos 60 por milhões de motivos; outra coisa é achar isso normal e, por conta disso, achar que negros ficam desolcados no rock e que não podem gostar de rock ou tocar rock.

Com isso, BellRays não sai da minha cabela desde sempre. Cada vez mais curtindo metal, tive a sorte de ter amigos que mostravam muitas outras coisas, de Weather Report e Miles Davis a Animal As Leaders, Shining e Introitus, coisas mais estranhas, pesadas e extremas. Mas havia uma coisa que me incomodava: cada vez mais gente aderia ao pensamento estúpido que rock não é lugar de negro.

Racismo estrutural? Também, mas senti desde sempre uma tendência de rotular as pessoas e de estabelecer um sistema de “castas”. E os negros, que sempre nos acostumamos a ver nos cargos e nas funções mais básicas da sociedade, ganhando menos e consumindo certo tipo de coisas, ganharam “rótulos”.

Jimi Hendrix (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Como assim negro gostar de rock? O negócio deles é samba e rap – coitada dessa gente, será que um dia vão ouvir Body Count?

Como assim um negro se tornou médico? Como conseguiu? Negro dono de um negócio? Gerente ou diretor de empresa?

Nós nos acostumamos a esse tipo de coisa desde sempre e ficamos anestesiados quando ouvimos tal coisa. Pior, ficamos preguiçosos e acomodados ao permitir que as coisas ficassem desse jeito por mais de 100 anos e nada fizemos.

E agora, depois de quase 20 anos da descoberta dos BellRays e da diva Lisa Kekaula, tenho de admitir que, se não fui racista no sentido extremo da palavra, ao menos fui preconceituoso ao “normalizar” e não protestar contra essa coisa de “rock não é coisa de negro”. Como assim? Racista por osmose ou por preguiça de se posicionar?

É o caso de me desculpar? Até certo ponto, mas jamais estive no mesmo barco que essa gente grosseira e limitada. Se houve algum tipo de omissão de minha parte, justificada ou não pelo racismo estrutural, o fato é que cedo me insurgi contra o pensamento preconceituoso dominante.

Ok, me dê o desconto de ter frequentado rodas de samba e de rap contra a minha vontade para pagar de descolado. Não gostei e não gosto de samba ou de rap, mas nem de longe os sons me incomodam. Foi importante conhecer outros ambientes e observar como se dá a tolerância social e racial.

Um dos professores mais legais que tive na psicologia era negro, e tinha menos de 40 anos. Só usava roupas afro, cabelo com dread locks e era louco por reggae. Mas amava Yes e Camel, bandas inglesas de rock progressivo.

“O rock ficou conservador nos anos 80, cooptado pela indústria e pelo sistema. No Brasil, sempre foi de classe média, desde 1960. De revolucionário passou a mantenedor do status quo. Para os negros americanos e jamaicanos, era muito limitado e sectário. Eles queriam mais e ouviam de tudo. Por isso o interesse menor no rock do que no jazz e no blues”, me disse certa vez, no bar, o professor Januário.

E então eu estou aqui, hoje, participando de vários grupos de roqueiros no WhatsApp e outras redes, com predominância de roqueiros brancos e conservadores, muitos dizendo que são progressistas e de esquerda. E escorregando na casca de banana quando tentam “justificar” menos negros no rock. E achando isso bom.

Renan, arquiteto milionário e militante do PT, faz questão de dizer que é esquisito ouvir rock feito por negros – como se ele tivesse informação e ouvido musical para saber se um músico é negro ou branco Mas eu seu que ele nunca viu esquisitice quando curte “Hey Joe”, com Jimi Hendrix.

Living Colour (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Que eu saiba não há negros nos grupos em que estou, senão haveria protestos contra expressões como “bandido bom é bandido morto”, “racismo é mimimi”, a PM tem de ter liberdade para atuar, e bandido tem de apanhar”, “racismo é coisa de esquerda”, “black lives matter é só uma maneira de fazer bagunça. E, é claro, “lugar de preto é no samba”.

Ficou bem pior quando o negro americano George Floyd foi assassinado por policiais, nos Estados Unidos. Coincidência ou não, surgiram muitos casos de violência policial contra negros e assassinatos cometidos por PMs no Brasil no período. E aquela gente que dizia que era progressista e de esquerda começou a vomitar em defesa da polícia violenta e assassina.

Observando esses grupos e tendo notícias de outros ambientes, concluo que parte bem expressiva do roqueiro brasileiro é racista  e sente, no mínimo, desconfortável quando o negro entra no rock e, mais ainda, quando “quebra tudo” – e são os mesmos qu gostam de classic rock e veneram Jimi Hendrix.

E nem vou mencionar o bolsonarismo aqui, neste depoimento, para não contaminar e empestear o texto. Nem é preciso fazer alusão à orientação ideológica desses crápulas preconceituosos – e desconfio bastante dos estúpidos que se dizem progressistas e de esquerda, mas racistas em vários níveis.

* Axe of God é um pseudônimo esdrúxulo escolhido pelo executivo de uma empresa de tecnologia da informação que trabalha em São Paulo. Pediu para não ser identificado por temer represálias nos grupos físicos de que participa e também nas redes sociais. Apesar de repudiar o que lê e o tipo de conversa que rola nestes ambientes, pretende continuar participando até para que possa estudar o comportamento dessa gente e constatar, de forma triste e abjeta, como o rock no Brasil está se tornando cada vez mais preconceituoso, cheio de ódio e racista. De forma relutante, concordou em dar esse depoimento ao Combate Rock/Sperball Express por considerar importante explicitar os rumos que nossos ambientes estão tomando.