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Wood e Stock, os roqueiros hippies (IMAGEM: REPRODUÇÃO)

Quem sabe rir de si mesmo consegue perfeitamente divertir os outros, sem ofensas e sem baixarias. O ditado é antigo, mas é largamente citado pela cartunista Laerte, uma das gigantes do ramo no país. Essa é uma razão do sucesso dela e dos mais chegados amigos, Glauco e Angeli, que formavam um time imbatível na Folha de S. Paulo.

Glauco foi assassinado anos atrás em um caso escabroso envolvendo religião e problemas psiquiátricos de um agregado. Agora Angeli dá adeus às charges, cartuns e tirinhas por conta de uma afasia, um distúrbio cerebral que afeta a fala e a memória, guardando algumas semelhanças com o Mal de Alzheimer. Sobrou Laerte.

Aos 65 anos, Angeli vai desacelerar e continuar o trabalho artístico em outras áreas. Deixarão órfãos personagens marcantes como Bob Cuspe, Rê Bordosa (“Da religião só me interessam o vinho e os pecados”), Wood, Stock, Overall e muitos outros.

Muitos dos personagens de cartunistas importantes são alter egos, frações de suas personalidades. Geraldão, de Glauco, era a cara e o corpo do próprio. No caso de Angeli, mais multifacetado, tudo remetia a ele, mas não de forma simplória e direta.

Ria muito de si mesmo e gostava de mostrar isso nos cartuns e charges demolidores na Folha de S. Paulo, assim como nas revistas de quadrilho que editava. 

Rindo dele mesmo, ria e debochava dos amigos e ainda mais dos desafetos, em um traço característico com temas urbanos e quase sempre paulistanos. E com o rock sempre por perto, seja nas “trilhas” sonoras que embalavam os excessos e ressacas da Rê, seja no classic rock ás vezes embolorado e saudosista da dupla riponga Wood e Stock

Angeli ia na veia com suas sátiras e suas críticas, especialmente quando ridicularizava os velhotes fossilizados que não admitiam ouvir nada mais do que Rolling Stones de antes de 1971. Depois disso, nada servia. Essa gente existia aos montes nos anos 80 e 90 em São Paulo e ainda continuam por aí, pelo menos alguns…

Claro que ele não foi único a escrachar o rock usando o próprio rock. The Rutles zoaram os Beatles (quem não se lembra de “All You Need Is Cash”?) com classe – não seria ser de outra forma em se tratando de gente ligda ao Monty Python…

Nos Estados Unidos teve a banda fake Spinal Tap, que satirizava as loucuras e breguices do hard rock, algo que foi recriado com certo sucesso no Brasil pelo Massacration e seu vocalista, Detonator, vivido pelo cantor e baixista Bruno Sutter. A gaera de Hermes & Renato também passeou pelo tema.

No entanto, Angeli o fez com mais contundência com o Wood e Stock. Mesmo os mais novos e que não gostam de classic rock certamente s eviram retratados, de alguma maneira, nas tirinhas da dupla de songamongas abestalhados presos nos anos 60 e envoltos por nuvens de maconha da pior qualidade. Na vitrolinha, sempre algum disco dos Stones ou de Bob Dylan…

Angeli fez parte do nosso tempo e de nossa formação com sua perspicácia e inteligência. Adorava gente e conversar, ao contrário do Bob Cuspe, um de seus personagens, que não gostava de gente…

Bob Cuspe e seu visual punk carregado também é um tributo ao rock e às tribos rebeldes e nostálgicas dos anos 80 e 90 das grandes metrópoles. Virou uma animação bastante concorrida em plataformas de streaming e cineclubes em tempos de pandemia, trazendo uma visão ácida e mordaz da vida nas cidades nestes tempos quase pós-pandemia.

O rock foi bem retratado pelo cartunista-chargista-mestre das histórias em quadrinhos que se despede aos poucos. Ficaremos órfãos de sua excelência e de sua inteligência, assim como seus maravilhosos personagens que tanto nos fizeram rir, refletir e aprender.