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 Existem aqueles momentos marcantes em que o tempo para e só você percebe o que acontece – e só você escuta, ou pelo menos é assim que interpretamos. É o tipo de sensação que muitos, no século XIX, garantem ter sentido no teatro Scala, de Milão, assistindo a óperas de Giuseppe Verdi, ou em Bayreuth, na Alemanha, na execução sinfonias de Richard Wagner.

A descrição serve perfeitamente para uma certa sexta-feira de dezembro de 1980, na cidade de San Francisco, na Califórnia, quando três gênios da guitarra e violão subiram ao palco e fizeram o mudo parar para reverenciar sua arte.

Quem esteve no Warfield Theater naquele 5 de dezembro presenciou três homens e três violões exibindo o que de melhor a música ocidental produziu em séculos. 

O espanhol Paco de Lucia, o norte-americano Al Di Meola e o inglês John McLaughlin entraram para a história por conta da série de shows magnífico daquela turnê e, meses depois, com o lançamento da gravação daquele concerto.

Quarenta anos depois do lançamento do magistral “Friday Night in San Francisco”, eis que Di Meola acena com uma grande novidade: para comemorar a data, o disco original não apenas seria relançado, como também um outro, com as músicas tocadas no dia seguinte, 6 de dezembro.

“Já me acertei com John McLaughlin e as possibilidades de termos um ‘Saturday Night in San Francisco’ são muito grandes”, afirmou o guitarrista norte-americano em entrevista ao jornalista Daniel Dutra publicada no site da revista Roadie Crew.

Em temos de pandemia devastadora, essa é uma notícia extraordinária. O nível de excelência instrumental demonstrada no álbum original faz com que sonhemos com o que pode vir a aparecer no disco com o concerto de sábado.

Di Meola dá a entender que a celebração da data contaria apenas com essa possibilidade, o que não é pouco diante do monumental conteúdo. Ficou subentendido que não haveria show mesmo que a pandemia acabasse, já que Paco de Lucia morreu em 2014, aos 66 anos.
“Friday Night in San Francisco” é um dos grandes momentos da história da música. Dois já veteranos músicos do cenário internacional aceitara se unir a um jovem prodígio do jazz para uma turnê que deveria reunir o melhor do rock, do jazz, do blues e da música flamenca, além de traços da música erudita.

Internacionalmente, o grande nome era John McLaughlin, guitarrista inglês prestigiadíssimo na Londres do final dos anos 60 e que foi laureado com a honra de tocar com Miles Davis, experiência que foi fundamental para que criasse a sua Mahavishnu Orchestra, um dos pilares do jazz rock.

Al Di Meola, geniozinho precoce, despontou quando integrou um dream team do jazz fusion, o Return to Forever, ao lado dos ícones Stanley Clarke (baixo), Chick Corea (teclados) e Lenny White (bateria). A partir daí decolaria em uma carreira solo extraordinária.

Paco de Lucia, por sua vez, era muito admirado pelos outros dois e era referência europeia no violão erudito e na música flamenca. Frequentemente foi considerado o instrumentista de cordas mais habilidoso e veloz no segmento de cordas.

Apesar das experiências e currículos diversos, ninguém estranhou quando a turnê americana com os três foi engatilhada. Especulou-se a respeito dos egos inflados que poderiam colocar tudo a perder, mas isso não ocorreu. Houve muito respeito no palco e uma espécie de pacto de colaboração com cada um ajudando o outro e jogando juntos para um espetáculo marcante.

A maior excentricidade do repertório, que acaba sendo o maior destaque, em minha opinião, é “Frevo Rasgado”, composição do brasileiro Egberto Gimonti, venerado pelos três guitarristas, o que só realça a genialidade do compositor. A canção foi executada de forma brilhante por Lucia e McLaughlin, que a executaram de forma soberba.

Os três juntos, no álbum, só duelaram, digamos assim, na bela “Fantasia Suite”, de Di Meola, onde cada um deu jeito de estraçalhar no instrumento em uma composição que “sugeria” momentos virtuosos. “Guardian Angel”, de McLaughlin, que fecha o disco, foi gravada em estúdio cinco meses depois, já em 1981.

A reedição de uma obra-prima da música e o lançamento de uma apresentação inédita do trio do dia seguinte são daquelas notícias que precisam ser comemoradas.