Escolha uma Página

 Marcelo Moreira

Um livro, uma guitarra, vários sonhos e o blues conduzindo a vida. Nuno Mindelis é um personagem fascinante e um profissional que tem muito para contar. Um ou vários CDs não deram conta de tanta história e tanta experiência.

Um artista do mundo, mas com raízes brasileiras mais do que sólidas, Mindelis se reinventa na pandemia como um escritor de texto saboroso e elaborado – ok, o livro já estava pronto há algum tempo, mas só viu a luz do dia no final de 2020.

“Porque Eu Não Sou um Bluesman” é provocativo, mas é instigante. De teor autobiográfico, mas com estrutura de romance, a obra traça um panorama delicado e aventureiro de um cidadão exilado que precisou superar a distância da terra natal para redescobrir vocações e futuros em pleno Rio de Janeiro. 

Mindelis recorreu a quatro personagens diferentes para narrar uma trajetória que começa em Angola, sua terra natal, passa pela Europa e Canadá antes de aportar no Rio de Janeiro.

A receptividade da nova empreitada foi tão boa que ele admite enveredar pela literatura novamente. “Gostei dessa brincadeira. Acho que tenho tantas boas histórias que podem render um novo livro.”

Com um álbum fervendo para ser divulgado nos palcos – o guitarrista lançou “Angola Blues” no ano passado, um CD cantado em idiomas africanos de sua terra -, Mindelis não conseguiu desenvolver um show com essas músicas por conta da pandemia de covid-19.

Inquieto e ansioso pela arte, já pensa nos próximos discos e necessidade de escrever para aplacar a sanha de criar. Ele mesmo diz que está devendo um álbum de blues tradicional e que pode expandir as ideias de explorar ainda mais as ideias de gravar temas africanos.

“O CD mais recente e o livro, de certa forma, me reconectaram com boas lembranças e temas que me acompanharam de que saí de Angola”, diz o músico.

Músico precoce, aos 14 anos já enveredava por vários estilos musicais na cidade onde morava. A trajetória continuou na capital de Angola, Luanda, onde o caldo cultural ajudou a forjar parte da identidade do guitarrista, fascinado pelo blues rock dos anos 60 e 70, mas atento ouvinte da música brasileira e das tradições africanas.

Nuno Mindelis (FOTO: DIVULGAÇÃO)

O fim da ditadura de Antonio Salazar em Portugal, em 1974 , abriu as portas para os movimentos separatistas das colônias africanas, entre elas Angola. 

No ano seguinte veio a independência, mas seguida de longas disputas pelo poder, culminando em guerras civis. Mindelis e a família, assim como muitos portugueses e seus descendentes, tiveram de deixar o país. 

Foram dois anos entre Europa e Canadá até que o jovem Nuno reencontrasse o pai no Rio de Janeiro. O que era um reencontro familiar se transformou em nova vida, que tomou contornos definitivos com a mudança para São Paulo anos depois e a retomada da carreira musical, transformando-o em um dos pioneiros do blues por aqui. 

Em um cenário que envolvia Celso Blues Boy, Blues Etílicos, forjou uma identidade musical que reuniu uma imensa quantidade de influências, sempre tendo o blues como base e carro-chefe, mas nem sempre trilhando o caminho mais fácil e óbvio, tornando-o um artista internacional reconhecido e admirado.

Não é por acidente que ganhou o apelido de “The Beast” (A Fera) nos Estados Unidos, a ponto de ser admirado e tietado por gente como Duke Robillard, extraordinário guitarrista norte-americano que é simplesmente um dos diretores de turnê de Bob Dylan.

Ovacionado há dois anos no Suwalki Blues Festival, na Polônia, uma apresentação que virou CD ao vivo, Nuno Mindelis um músico raro em busca de oportunidades, mas também de uma perfeição estilística que o transforma em referência. 

“Angola Blues”, a pandemia e a carreira literária abrem uma nova fase para o músico. O livro e o blues encharcado de world music são o diferencial de uma trajetória que extrapola os limites doa acordes de guitarra.

“É um privilégio ter condições de atuar em áreas diferentes da arte e da cultura e creio que as possibilidades são instigantes, mas é óbvio que sinto falta dos palcos. Estou muito otimista com a chegada da vacina e da retomada, ainda neste ano, dos shows e de uma certa normalidade em nossas vidas”, torce Mindelis.

A pandemia precisa ser abreviada, pois é um pecado sermos privados de uma apresentação com as canções de “Angola Blues”. “Muitas das canções que ouvi quando criança no rádio eram de artistas angolanos que cantavam no dialeto kimbundu, um dos vários do país. Procurei valorizar a cultura africana e angolana resgatando algumas dessas canções e compondo dentro desse espírito.” 

“Angola Blues” surpreende pela extrema musicalidade e pela total compatibilidade com o blues, que é um descendente direto de ritmos negros da África Ocidental que foram introduzidos nos campos agrícolas movidos a escravidão dos Estados Unidos a partir dos séculos XVIII e XIX. 

O som é rico, denso e marcante, onde Mindelis, totalmente à vontade e em casa passeando pelos ritmos e melodias angolanas, desenvolve riffs e melodias inusitadas e levando o ouvinte a um mundo muito pouco conhecido no Brasil. 

Se “Blues for Africa”, de Adriano Grineberg, embute um certo espiritualismo por conta das experiências pessoais do artista, “Angola Blues” também traz um conceito filosófico, digamos assim.

“Eu sou da Terra. Todos nós somos terráqueos e deveríamos circular livremente pelo planeta sem restrições de conceitos políticos de fronteiras ou preconceitos ideológicos. Tem a ver com liberdade e com ideias de celebração, de felicidade”, afirmou o músico.

São mais de 30 anos de carreira musical marcada por milhões de referências e uma diversidade estonteante para quem está acostumado à amarras dos gêneros musicais.

Sua guitarra limpa, delicada e elegante vai do blues tradicional ao blues rock texano, passado pelos ritmos eletrônicos, pelo jazz e pela música brasileira com autoridade. Seu respeito pela cultura nacional e sua música é tanta que chega a irritar tamanho é o seu conhecimento. 

“Tive de abandonar uma coleção de mais de 2 mil LPs em Luanda, capital de Angola, por causa da guerra. Tinha muita, mas muita coisa de música brasileira que adquiri lá pelos anos 60. Gostava demais dos trabalhos de Jorge Ben (hoje Benjor), por exemplo”, diz o músico.

Evidentemente, referências existem aos montes em “Angola Blues”. Guitarras e teclados convivem em grande harmonia, omo em “Cabinda”, que tem um ritmo africano-latino contagiante e solos de guitarra de extremo bom gosto. 

O dueto com a cantora angolana Jéssica Areias é o ponto alto de refinamento da canção. Essa também é uma característica da ótima “Muxima”, que traz a presença de Flora Purim, brasileira radicada há décadas nos Estados Unidos, onde é reconhecida como um ícone do jazz e da world music.

A canção é um autêntico blues em sua concepção, mas cresce, e muito, com a adição de um molho africano e o idioma kimbundu, ganhando uma dramaticidade a grandes clássicos soul e rhythm and blues de Nova Orleans. 

A sofisticação da voz de Flora e dos solos de guitarra transformam completamente o ambiente de uma canção que poderia ser somente mais um blues. 

E a festa sobe o tom com o quase blues rock “Brinca N’Areia”, que flerta com vários ritmos africanos e caribenhos, com seu refrão único em português que celebra uma paixão do músico, a pria, dos tempos em que morou na capital angolana, Luanda. 

“Monami Zeca” tem um balanço irresistível, com uma mistura gostosa de samba rock, blues e soul music, com algum tempero usado à exaustão pelos brasileiros do Bixiga 70. É mais uma faixa contagiante e que vai cair nas graças do público nos shows.

“País Tropical” é o seu tributo ao então Jorge Ben. A versão blueseira é cheia de suingue, reverenciando a original na percussão cariocamente malandra e precisa nos solos de guitarra maneiros, como se diz em alguns botecos do Rio. É um respiro da africanidade que caiu bem como encerramento do trabalho.


“É um passo importante e uma realização musical poder abordar esses temas, algo que sempre quis fazer”, comentou o guitarrista.

Mais do que uma reparação histórica de uma lacuna abissal , ouvir blues africano tornou-se uma necessidade cultural diante de um mercado musical e fonográfico que tenta se reerguer e reinventar. 
Pouco difundida no Brasil, a música africana ganha um impulso gigante com o ótimo álbum “Angola Blues”.