Escolha uma Página

Marcelo Moreira


 
Orestes era um cidadão abaixo de qualquer suspeita. Aliás, era suspeitíssimo, com sua barba de comunista e cabeleira de hippie quase velho. Adorava suas sandálias de couro nordestinas e não largava seu inseparável “walkman” da Sony, produto revolucionário que permitia andar e ouvir música com fones de ouvido escutando fitas cassetes. Era o sonho da música portátil para os amantes dos sons – e muito caro pra os brasileiros em medos de 1985.

O professor interiorano de biologia era a cara do novo colégio aberto recentemente por uma tradicional faculdade de direito, administração e educação física em Guarulhos. 

A ideia era seguir de perto o que o Objetivo propunha, em termos de filosofia liberal e novos costumes – mas sem avançar muito.

Orestes era referência porque era o mais próximo de um professor de cursinho poderia ser em um colégio conservador, privado, de gente com bom poder aquisitivo. 

Era mais novo do que os outros professores, jogava futebol com os alunos e tocava violão. Amava a sua Ponte Preta, venerava os artistas de MPB e mergulhava de cabeça na literatura marginal e de esquerda.

Enquanto o mundo finalmente ensaiava uma era de mudanças rápidas, o professor barbudo e ripongo de biologia ajudava a arejar as cabeças ansiosas daquele ginásio (hoje ensino médio) guarulhense meio caipira, totalmente suburbano e carente de ideias progressistas.

A mesma aula legal e informativa que dava no colégio privado de Guarulhos ele reproduzia em outros três colégios estaduais da zona leste paulista. Ele tinha prazer em ensinar, com certa dose generosa de subversão e politização no fim do regime militar, então encerrado havia meses.

Ao lado de Valdevino, mais velho, que ensinava português e literatura, alter Roitman, que ensinava histópria, Orestes gostava de ensinar e informar. Tinha prazer em saber que suas informações despertavam interesse além da biologia, especialmente quando alguém sequestrava o violão do º colegial B, no corredor de cima.

E lá vinha o rock’n’roll, finalmente, depois de algumas chatices cabeçudas da MPB. Era mau violonista, mas conseguia arranhar peças do Yes, do Genesis, do Police, do Clash, de Bob Dylan e de seu amado Neil Young. Enfiava Raul Seixas no meio, algumas vezes, mas não era sempre.

E assim Orestes curtia o seu trabalho, e fazia a maioria de seus alunos adolescentes gostar de suas informações extraclasse, fora da aula. 

Orestes e Valter, mais do que suas matérias, gostavam de ensinar cidadania. Curtiam disseminar informação e conhecimento. Ficavam extasiados quando as aulas terminavam, mas ninguém levantava, fisgados pelas histórias fascinantes e causos, assim como canções diferentes.

Orestes era o amigão da turma, que tomava cerveja no boteco da frente e adorava desfiar um rosário de viés esquerdoso, mas eficiente, pregando contra a desigualdade obscena que sempre predominou neste país infeliz.

Valter era mais tímido e recatado, menos eloquente. Preferia investigar as causas das desigualdades e fazer com que os alunos entendessem as suas causas e usassem isso para lutar contra elas no futuro. 

Pacientemente, segurando um ponte pastas e recortes de jornais, ficava horas nas escadarias cercado por gente que se esforçava para entender porque o nosso país era reflexo direto de escolhas complicadas do passado e o porquê de nosso futuro ser nebuloso.

Orestes e Valter estão sendo usados aqui como sinônimos de profissionais e de pessoas que foram/são fundamentais em nossas vidas e nas vidas de todas e todos que pretendem evoluir e ajudar a mudar as coisas, seja de que forma for.

São figuras necessárias e que merecem as maiores mesuras em mais um momento em que a extrema-direita nojenta ataca a educação e o conhecimento.

Jair Bolsonaro, a estupidez em forma de ser humano, debocha dos desastres ambientais e desdenha da pandemia que matou 16 mil pessoas até o momento. Chamou os professores de vagabundos por se recusarem a voltar às aulas com a covid-19 ainda descontrolada.

Vagabundos. É assim que o presidente nefasto se refere a profissionais frequentemente mal remunerados que precisam enfrentar escolas mal equipadas, sem infraestrutura e envoltas em um mundo de violência e falta de interesse em uma sociedade que estimula a violência e que aprofunda o fosso social incentivando as desigualdades.

Médicos peritos da Previdência e professores rechaçam a volta ao trabalho por temerem por suas vidas e as dos alunos/pacientes. 

Diante da irresponsabilidade de governantes e da maioria da população, que abandonaram o isolamento social, sobra para estes profissionais tentarem jogar um pouco de luz sobre as aglomerações que virão se aula e consultas forem liberadas.

Voltar as aulas é um crime irremediável que será cometido contra nossos estudantes. E são os “vagabundos” que estão zelando pela segurança das crianças.

Mais do que cinismo, é deformação de caráter alegar que o transporte público, bares, shoppings e restaurantes estão cheios, assim como ruas de comércio popular estão abarratadas. Por que então não reabrir as escolas?

Coimo uma série de irresponsabilidades justificassem o cometimento de mas desatinos, mesmo que esses supostamente venham endossados por “especialistas” em educação e órgãos de imprensa que distorcem recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O presidente estúpido e incompetente envolvido com milicianos chama professores de vagabundos por que estes “querem ficar em casa sem trabalhar”, da mesma forma que diz que “ficar em casa na pandemia é coisa de gente fraca”.

O professor, assim como o cientista e o artista, é perigoso para as hostes do atraso. Todos eles costumam iluminar as trevas e resgatar a inteligência vilipendiada pelos arautos da era medieval em pelo século XXI. 

Nem mesmo os cortes no Orçamento da União denunciados recentemente serão capazes de calar os professores e impedi-los de disseminar conhecimento e estimular a informação.

Os causos de Orestes e as suas péssimas tentativas de tocar no violão “I’ve Seen All good People”, do Yes, são lembranças muito fortes e os maiores motivos para celebrarmos a importância dos professores em nossas vidas e nas batalhas contra o obscurantismo