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“Eu toquei em quase todos os lugares e visitei mais 90 países. E, muitos deles conversei com muita gente e conheci muita gente. Mas hoje eu quero dizer que o nosso ‘chefe’ é uma pessoa fantástica. Posso dizer que nunca, jamais conheci pessoa melhor do que Eric Clapton, que nos proporcionou esse evento maravilhoso. Tenho 81 anos e tenho orgulho de estar aqui. Um brinde a Eric, que é bem mais jovem do que eu.”

O mestre B.B. King, que sabia das coisas, fez aquela que talvez seja a maior homenagem em vida feita ao guitarrista inglês. Foi durante o o segundo Crossroads Festival, em 2007, o evento beneficente que Clapton organizava a cada quaro anos nos Estados Unidos. A ideia era arrecadar fundos para as populações das ilhas do caribe devastadas anualmente por furacões.

O vídeo, emocionante, mostra o rei do blues entrando no palco, caminhando com dificuldade, sentando para tocar tendo o suporte da banda de Robert Cray – mesmo que na semana passada rompeu com o guitarrista inglês por conta das posições negacionistas e comparações racistas incabíveis. Foi no dia 28 de julho de 2007, em Chicago, e Cray está no vídeo.

Em que momento, nos últimos anos, Clapton deixou de merecer a homenagem feita pelo mestre B.B. King, morto em 2015? Em que momento o grande guitarrista abandonou a sua delicadeza e generosidade para se tornar um paladino dos seres execráveis antivacina e anticiência?

Ao investir contra o bom senso e incentivar a necropolítica, induzindo à morte e vomitando sobre conceitos tortos de “liberdade individual”, Eric Clapton se tornou indigno das homenagens de um dos maiores artista de blues da história. Tornou-se uma pessoa a ser evitada e ter as láureas de seus concertos beneficentes enterradas bem fundo em um canto qualquer.

As obras costumam ser bem maiores do que seus autores, e exemplos não faltam, principalmente na Alemanha, onde os conservadores Richard Strauss, Richard Wagner e Friedrich Nietzsche tiveram seus escritos e suas músicas apoderados pelos nazistas.

O catálogo de Clapton é imenso e valioso, de extrema qualidade, ainda que sofra máculas por conta dos comportamentos reprováveis do cidadão Clapton.

Nada vai apagar os maravilhosos festivais Crossroads e seus objetivos beneficentes. No entanto, quando amigos rompem amizades e negócios como fez Robert Cray, é sinal de que muitos limites foram ultrapassados, sejam em relação ao negacionismo, sejam relativos aos conceitos deturpados de liberdade e às comparações esdrúxulas sobre escravidão e restrições de movimentos por conta de uma pandemia mortal de covid-19, que já matou 5 milhões de pessoas desde 2020, a pior em 100 anos.

Ao se associar ao também “terraplanista” Van Morrison e fazer músicas contra a vacinação e contra as medidas de isolamento social, Eric Clapton mergulhou fundo no paço de lama da história e desonrou não só a sua própria história, mas jogou fora o seu legado e a reverência de um gigante da música que teve orgulho de chamá-lo de amigo. B.B. King certamente reconsideraria seu discurso se estivesse vivo.