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O fogo que queimou a estátua de Borba Gato na semana passada incendiou as redes sociais. De um lado, gente que apoiou o ato promovido pelo até então desconhecido grupo Revolução Periférica. De outro, muitos gritos e ranger de dentes do pessoal que se apressou a dizer “Criminosos!”. Neste Combate Rock, Marcelo Moreira alinhou-se ao segundo grupo: “Não resta dúvida que a queima da estátua se trata de um ato infantil e desprovido de qualquer lógica”, escreveu.

Guardadas as devidas proporções e respeitando os diferentes movimentos históricos, dizer isso me faz imaginar o que o mesmo escriba diria na Paris de 1789, quando da tomada da Bastilha. Este evento acabou resultando não só na queda do regime como também acabou desembocando na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Claro que não espero que algo semelhante resulte do ataque do sábado passado, mas uma coisa me parece óbvia: as chamas no Borba Gato jogaram luz sobre a pertinência de se homenagear gente como os bandeirantes ou traficantes de escravos, seja no Brasil ou em qualquer outro lugar.

Ano passado, durante manifestações antirracistas nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, estátuas que homenageavam personagens que atuaram na manutenção da escravidão e perseguição a povos originários foram atacadas por manifestantes. Em Bristol, na Inglaterra, a estátua do traficante de escravos Edward Colston foi derrubada e arremessada em um rio que corta a cidade.

A partir deste tipo de ação, a discussão sobre o assunto virou pauta em muitos lugares, no Brasil também. Sempre bom lembrar que o país, da mesma forma que todo o continente, foi feito em cima de três grandes pilares: o saque, o massacre dos povos originários e a escravidão. Homenagear os responsáveis por isso, em forma de estátuas, além de louvar atitudes que hoje são consideradas extremamente deploráveis, também é uma afronta à memória dos que foram vítimas dessas ações e seus descendentes.

Voltando ao texto de Marcelo Moreira, ele continua: “Por que ninguém lembrou de colocar fogo na estátua quando das manifestações antirracistas? Aí faria algum sentido. ” Em primeiro lugar, não existe hora certa para se fazer a coisa certa. Antes tarde do que mais tarde, diz o velho ditado.

A luta antirracismo (é assim que devemos tratar, como luta) não surgiu ontem, mas mais do que nunca se torna urgente. Repito, questionar a existência dessas homenagens (estátua na rua não é história, é homenagem) é necessária e, se esperarmos uma comissão para decidir se suas remoções devem ou não serem feitas, nada irá acontecer.

Depois, existe a tentativa de desqualificar os autores do evento, tratando-os como “manifestantes radicalzinho de perifa” (grifo meu). Em um lugar como o Brasil, onde as periferias são vítimas ou da ausência ou da violência do Estado, este argumento representa uma das faces mais odiosas do país: preconceituoso e sectário. Tenho a firme convicção que este lapso não faz parte do pensamento de meu companheiro de site e isso deve ser debitado somente a sua convicção em ser polemista.

Para terminar: não lembro de ter ouvido toda essa gritaria quando as estátuas de Lênin e Stalin foram derrubadas, nos escombros do regime soviético. Ou ainda, Saddam Hussein, no Iraque invadido pelas tropas estadunidenses. Ao contrário, esses fatos foram celebrados no Ocidente como vitórias da democracia e da liberdade. Também não lembro de ter ouvido, aqui mesmo no Brasil, esse pessoal todo protestando contra a destruição de templos religiosos de matrizes africanas , fato que acontece dia sim e dia outro também. Nessas horas, este silêncio é significativo.

Queimar estátuas não é apagar histórias, é História. E, muitas vezes, ela não é feita pedindo licença ou esperando favores.