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 Marcelo Moreira

– Lembra do Martim, que criou a banda xxxxxx? Aquele que vivia pedindo dinheiro para a cerveja e que adorava repetir as baboseiras do livro se sociologia da escola?

– Achei que tivesse morrido ou sumido de vez lá no Mato Grosso.

– O cara virou tiozão, franqueado de alguma coisa de comida ruim e decidiu virar motoqueiro, daqueles choppers grandes, bandeirinha do Brasil e adesivo do bolsonada. Tava todo imponente na manifestação dos fascistas… Ele e pelo menos mais cinco daquela turma de metaleiro falido que vomitava contra o “sistema”…

A constatação não é surpreendente, mas choca quando avançamos um pouco a fita e vemos, consternados, a quantidade de roqueiros que abraçaram a causa conservadora-fascista-depredadora e que agora não têm mais vergonha de sair do armário.

Martim era radical roqueiro contestador, sem grana como a maioria de nós e um pedinte compulsivo de dinheiro para a cerveja e um pouco de maconha. Seu apelido? Lemmy, em homenagem ao líder do Motorhead (Lemmy, lend me a five, ou me empresta cincão…).

A guitarra era velha, ruim, sem recursos, assim como o amplificador bichado. O metal que fazia com sua banda precária era ainda mais precário, desafinado, desqualificado, ininteligível. Ele dizia que era metal, mas a tosqueira estava mais para punk rock.

E então a vida seguia firme em nossa juventude movida a cerveja quente, barata e ruim, rock pesado e um constante desprezo das meninas ajeitadas que odiavam aquele mundo bagaceiro, que de vez em quando mudava um pouquinho quando alguém conseguia um subemprego pessimamente remunerado (que novidade).

‘Easy Rider’, o icônico road movie que trouxe o rock intenso em sua trilha sonora: a moto simbolizava a liberdade e contestação na virada dos anos 60 para os 70. Hoje o conservadorismo do mais abjeto predomina em vários motoclubes do Brasil (FOTO: REPRODUÇÃO)

E então a vida seguiu com alguma dignidade e interesses variados, assim como as ideias, mas dentro de uma certa decência, na maioria das vezes. 

Uns sumiram, seja por morte, seja por fuga, seja por novas vidas em novos mundos. O que jamais imaginávamos é que uns voltariam para nos assombrar.

Martim não gostava de estudar, e se orgulhava disso. Mas a questão não era só não gostar de estudar – eu e muitos detestávamos estudar, a escola e a faculdade. mas tivemos de estudar e frequentar faculdade para almejar alguma coisa, seja lá o que for. 

Martim despreza com todas as forças qualquer conhecimento, qualquer tipo de inteligência ou ciência dentro dessa lógica bolsonada, é um espanto que ele tenha conseguido aprender alguma coisa de música e guitarra.

E então o o cara cerrava cerveja e bitucas de cigarro em botecos escrotos da Grande São Paulo e periferias da vida segue a sua vida tosca e com poucas perspectivas e some. 

Quando reaparece, choca os antigos conhecidos por conta da sua decadência em todos os sentidos, revelando-se o chucro que sempre foi. Virou o modelo acabado de fascista supostamente bem de vida, que odeia preto, pobre e comunista e que se acha vencedor, mas ao mesmo tempo injustiçado por um “governo que joga contra quem trabalha e quem teme a qualquer entidade divina”.

Ou seja, é o homem mediano e medíocre que se vê representado pelo nefasto e incompetente presidente da República, um protofascista autoritário que aposta na ignorância e na guerra ideológico-cultural contra a “esquerda”. 

E aí vem a desolação: aqueles tiozões todos de clubes de motoqueiros que curtem Lynyrd Skynyrd, Allman Brothers, Deep Purple, barrigudos, falidos e com dificuldades para manter suas motovcas caras, são todos dessa estirpe.

“Não duvido disso. Fique dez minutos em um bar com esses caras e terá uma ideia do mundo conservador e preconceituoso deles”, me alertou outro amigo antigo, ex-associado de um clube de motoqueiros dos anos 80 e hoje bem distante desse ambiente.

Não é a primeira vez que escuto tal coisa. Não que surpreenda, já que esses clubes são frequentados por gente que costuma ter motocicletas que custam o valor de um apartamento. Quem anda de CG 125 ou mesmo uma Ténéré nem passa perto. Nem mesmo quem gasta uma boa grana em uma moto de 600 cc ou 750 cc.

São empresários e profissionais liberais bem-sucedidos que gostam de ostentar o que quer que seja, mas principalmente suas caras motos e suas caras roupas de couro copiando os “easy riders” norte-americanos em suas highways no Oeste ou Meio-Oeste.

Nos anos 90, esses caras, bem mais velhos do que nós, professavam um ideário conservador de cunho liberal, mas com certa classe e respeito às leis e à democracia, com apreço à academia e à inteligência. Eram suficientemente espertos para não brigar com a notícia e a realidade. 

E eram bem espertos para saber que, em um eventual governo Lula ou do PT, nada mudaria substancialmente no mundinho restrito deles, que ainda não estava mergulhado nas trevas.

Deep Purple, um dos gigantes do rock, continua no topo das preferências de som nos motoclubes: banda está há 53 anos na estrada e inclui cada vez mais letras políticas e progressistas em seus álbuns (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Mais de 20 anos depois, a vida deles deu um cavalo de pau, como a da sociedade brasileira. Crises econômicas e golpes políticos deram o tom da virada, e o protofascismo está na ordem do dia, depredando a realidade e destruindo o futuro de um país mergulhado nas trevas do negacionismo e da ignorância.

E então a gente começa a observar que o perfil socioeconômico dos frequentadores de boa parte desses clubes de motociclistas sofreu alterações lamentáveis e preocupantes. Liberdade e contestação? Os caras so querem acelerar, mostrar a moto nova, a amante da semana e tomar seu uisquinho. 

O som? Tem de ser rock, mas nada que fuja do cardápio de sempre – Lynyrd Skynyrd, Allman Brothers, Raul Seixas, Rolling Stones, Steppenwold com sua “Born to Be Wild”… Afinal, todos ali nasceram para ser selvagens, certo?

Enclausurados em seus próprios ambientes, essa galera aceitou de bom grado uma radicalização política e social mais profunda justamente porque os frequentadores são mais ou menos homogêneos, com certa predominância de pequenos e médios empresários com escolaridade mediana, mergulhados em diversos preconceitos de classe média e ojeriza a qualquer tipo de diversidade.

Com a escolaridade mais restrita, seus horizontes também ficaram limitados, ainda que tenham certo sucesso em seus pequenos negócios – a moto cara é um sinal disso. Entretanto, a mediocridade permaneceu, e qualquer sintoma de inteligência diferente ou de conhecimento além do básico incomoda.

É a cara do Martim que voltou das trevas. Dono de duas franquias, próximo da meia idade, escolaridade baixa, gastos altos para ostentar, dois casamentos desfeitos, um filho saindo da adolescência que não faz questão de visitar, dois processos por agressão (sendo um de uma das ex-mulheres) e um por atropelamento quando estava bêbado…

E não é só isso: suas empresas foram alvo de fiscalização do Ministério Público do Trabalho por conta de pelo menos dez denúncias trabalhistas sérias, com igual número de processos. 

Misógino, preconceituoso, racista, liberal até a página 2 e raivoso em relação a qualquer tipo de direitos humanos e trabalhistas. Acha a existência do salário mínimo um absurdo, assim como qualquer tipo de proteção social.

Curiosamente, teve de criar o s eu próprio clube de motoqueiros (não fiz questão de saber o nome) porque não se adequava aos que tentou se associar. De forma curiosa, anos depois o “perfil” semelhante ao seu dominaria muitos desses clubes por aí.

O que deu errado para esse gente? Onde eles erraram? Será que sempre foram assim e nunca percebemos? Será que o rock era apenas uma brincadeira, um passatempo?

Fiquei alarmado ao conversar com vários amigos e conhecidos que frequentam ou frequentaram os tais clubes de motociclistas e constatar um avanço nojento do bolsonarismo por aquelas hostes.

Sim, eu sei que estou sendo ingênuo a este ponto de achar que o rock poderia ser um enclave de inteligência e bom senso para rechaçar o bolsonarismo e o fascismo, por mais que aqui mesmo no Combate Rock sejam vários os exemplos contrários.

Sim, eu sei que não deveria ser surpresa que esses clubes, formados em sua maioria por homens e mulheres com dinheiro e vindos de uma classe média extremamente hostil e conservadora, sofressem forte influência de ideologias e pensamentos políticos nocivos.

Só que a utopia permanece, aquela em que o rock continua sendo contestador, rebelde e com atitude, de preferência de oposição e de defesa da liberdade e da democracia, além do respeito aos outros. 

Ora, com algum dinheiro no bolso, uísque à mão, uma amante bonitinha por perto e a moto com o motor em dia, vão querer saber de postura, atitude ou de contestar o que quer que seja? Deixem-me ouvir o meu Allman Brothers e o meu Deep Purple e não encham o saco, de preferência longe dos pobres  dos chatos que nos atrapalham no dia a dia…

E então Martim e sua turma, de forma sorrateira, tomaram de assalto muitos desses ambientes que permanecem roqueiros na forma, e de maneira bem superficial. 

Jon Schaffer, exemplo de radicalismo no rock: guitarrista e líder da banda de metal Iced Earth foi preso por ter participado da invasão do Congresso americano, em 6 de janeiro, na tentativa de extremistas de direita de impedir a confirmação de Joe Biden como presidente norte-americano. Apoiador do derrotado Donald Trump, Schaffer está sendo processado por seis acusações e pode ficar preso por muitos anos (FOTO: DIVULGAÇÃO) 

É o triunfo, ainda que temporário, do homem mediano/medíocre que rechaça o conhecimento, a ciência e a cultura, coisas que sempre o intimidaram e o amedrontavam. A eleição de Jair Bolsonaro foi a vitória do homem tosco e ignorante, coisa que fascinou muita gente – “afinal de contas, um de nós chegou lá”.

A conta que pagaremos será muito salgada, caríssima. Neste caso, a mediocridade é sinônimo direto de retrocesso e ignorância. é caminho acelerado para o autoritarismo e fascismo.

O amigo que meu notícias de Martim viu pessoalmente esse “cidadão de bem” participar de carreatas da favor do nefasto presidente. Liderou um batalhão de motos no ABC, na Grande São Paulo, e em avenidas importantes da zona sul da capital paulista.

“No ABC eram pelos menos 50 membros de motoclubes seguindo o Martim. E me disseram que eram mais de 100 no mesmo dia, em outra manifestação, em São Paulo”, dissem-me em tom de lamento e alerta. “Esses caras estão sequestrando o rock, os fascistas estão tomando conta dos nossos ambientes. Como pudemos permitir isso?”