Escolha uma Página

 Marcelo Moreira

A música, anima e nos empurra. A música cura. E também resgata. E nunca a música foi tão importante para a humanidade quanto nestes tempos de pandemia de covid-19 e confinamento social.

É impossível não lembrar dessas coisas quando escutamos alguns trabalhos, compostos e elaborados com tanto sentimento e “verdade” (conceito horrível em arte, mas aqui abro uma exceção). Muita gente revisitou obras desse tipo relacionadas ao jazz, por exemplo, neste ano, notadamente de Miles Davis e John Coltrane.

Dois guitarristas extraordinários mostraram extrema competência em seus trabalhos recentes e ajudaram a transformar nossos dias mais suportáveis, especialmente diante das sequências intermináveis de más notícias a respeito do (des)governo Bolsonaro e das diários descumprimentos das normas sanitárias.

O brasileiro Edu Gomes retoma a carreira solo com “Metamorfose”, uma coleção de temas em que ele aborda mais o jazz e o blues do que em trabalhos anteriores. O norte-americano John Petrucci, guitarrista do Dream Theater, lança o segundo disco solo fugindo do prog metal que o caracteriza.

Gomes é um dos artistas mais peculiares da música nacional. Guitarrista movido a “feeling”, é um dos nomes referência no blues nacional, tento tocado anos com a banda Irmandade do Blues e com os músicos Vasco Faé e Adriano Grineberg.

Em discos solos como “Âmago” e “Imo”, extravasou suas influências pessoais e musicais em temas que mais se assemelhavam a mantras, em canções que exalavam paz e tranquilidade, tendo o blues como fio condutor.

“Metamorfose” é um sopro de alegria e esperança, ultrapassando os limites da música climática. Espiritualizado e culto, Gomes trabalhou bastante tempo em uma série de CDs batizados de “Concerto da Cura”, ao lado do pianista Adriano Grineberg, baseado em temas que remetem à música oriental, principalmente a indiana.

A guitarra suave passeia pelo jazz, pelo blues e pelo rock com tamanha desenvoltura que é impossível não parar e prestar a atenção. 

É fácil observar elementos de Joe Pass ali, John Pizzarelli aqui, John Scofield em várias passagens, além de fraseados exuberantes que poderiam estar em discos de John McLaughlin, por exemplo. 

Edu Gomes (foto: divulgação)

Também estão lá os ecos do rock progressivo (David Gilmour, do Pink Floyd, e Steve Hackett, do Genesis), da música brasileira (Roberto Menescal e Tom Jobim) e do blues (Freddie King/T.Bone Walker). 

Os riffs são estimulantes, não deixam ninguém indiferente. Estimulam bons sentimentos e bons pensamentos, que talvez seja reflexo direto da técnica adquirida com os seus “Concertos da Cura” de música incidental intuitiva e recheada de sabedoria e mística.

Portanto, podemos dizer que “Metamorfose” é um álbum conceitual, onde as músicas têm um encadeamento e uma sinergia perfeitas. E esse conceito passa pela pandemia. 

A produção deste trabalho foi durante a quarentena do vírus Covid 19, e por isso o nome, que tem como significado principal: uma grande e rápida mudança. Situação em que nos encontramos agora.

O ambiente foi perfeito para a finalização. Todas as gravações foram feitas nos Home Studios dos músicos, começando pela bateria de seu filho Caio Gomes, que apesar de jovem, transborda musicalidade e maturidade. 

No baixo elétrico e acústico, a experiência e criatividade de Airton Fernandes. No piano e sintetizadores, o cantor e multi-instrumentista Adriano Grineberg, seu parceiro de composição no projeto “Concerto de Cura”, com sua incrível capacidade de colorir e temperar as composições. 
O álbum também conta com a participação especial da voz cristalina da cantora Sonia Santhelmo e do baixista parceiro no ZFG Mob, Fabio Zaganin.
Não há como não admirar uma peça orgânica como “Imagem dos Sonhos” ou a poderosa e instigante “Você Pode”. São uma aula de guitarra com feeling, uma verdadeira trilha sonora dos bons momentos de uma vida interessante.
O rock dá as caras em “Fluido” e “Serenidade”, que exalam uma suavidade que chega a ser contagiante. “Persistência”, “Metamorfose” e “Ventura” misturam boas doses de jazz e blues e servem de “cama” para sustentar uma obra de rara sutileza e espontaneidade. Uma trilha divina para os tempos de pandemia.

Suavidade é o que não temos em “Terminal Velocity”, de John Petrucci, mas, por outro lado, há altas doses e otimismo e perseverança em outra obra da pandemia.
Caminhando a largos passos para se tornar um dos gênios da guitarra do nosso tempo, o guitarrista americano fez o que pôde para ingressar no panteão dos mestres da guitarra veloz em “Suspended Animation”, seu primeiro disco solo, lançado na década passada. 
Quis se distanciar do Dream Theater e acabou cometendo um álbum excessivamente voltado para o instrumento, com muita velocidade e notas aos milhares e o resultado ficou abaixo do esperado, embora tenha rendido um clássico instrumental, “Glasgow Kiss”.
No seu segundo álbum solo, lançando mais de 15 anos depois, a maturidade parece ter chegado. Mais coeso e bem arranjado, Petrucci apostou no formato power trio e na simplicidade, o que pode simbolizar uma época de mudanças em sua carreira.
Olhando para o passado, reconciliou-se com o amigo de infância Mike Portnoy, baterista ex-companheiro de Dream Theater, que toca em todo o álbum, com o baixista David La Rue completando o time.
“Terminal Velocity” é menos prog rock e mais jazz e blues. Guarda algumas semelhanças com os novos caminhos dos guitarristas Joe Satriani e Alex Skonik (Testament), além de rivalizar com o novo trabalho de Kiko Loureiro (Megadeth, ex-Angra).
Mais diversificado e com menos exibicionismo, Petrucci oferece uma coleção de temas onde fluem toda a experiência de 35 anos de carreira no heavy metal e no blues. 
O guitarrista esbanja otimismo, carregando no feeling de fraseados rápidos, mas eficientes, agregando uma série de elementos que fogem do seu tradicional metal progressivo executado à velocidade da luz. O peso está lá, mas não é agressivo, do tipo de que explode na cara e no cérebro. É hard, é heavy, mas cheio de blues e jazz, reunindo uma miríade de influências.
Ele deixou o melhor do álbum para as duas músicas de encerramento. “Snake in My Boot” é enérgica, rápida e com timbres que dão a impressão de que o bom humor tomou conta do estúdio. É rock instrumental bem feito e sem firulas.
Mike Portnoy (esq.) e John Petrucci (FOTO: DIVULGAÇÃO)
 “Temple of Circadia” lembra alguns momentos antigos do Dream Theater”,  com a bateria de Portnoy trovejando de forma imponente e compondo aspectos melódicos da canção. O baterista mostra sua ualidade estonteante empurrando a música, em dobradinha sensacional com La Rue.
Outros destaques são a pesada “Gemini”, onde Petrucci tem uma recaída e decide despejar milhares de notas por segundo em uma base heavy tradicional. Ficou bom, apesar do excesso de virtuosismo. “Out of the Blue”, mais cadenciada, expõe a classe do instrumentista, remetendo aos melhores momentos de Satriani, Steve Vai, Marty Friedman (ex-Megadeth) e Eddie Van Halen.
Longe de ser entediante, é um álbum onde a guitarra canta e vibra, expondo traços do melhor que o metal e o hard rock podem impor em tempos de pandemia. É também um álbum necessário para estes tempos sombrios de confinamento social e depredação político-administrativa perpetrada por um governo incompetente de inspiração fascista.