Springsteen no silêncio do estúdio caseiro

Pôster do filme “Springsteen – Salve-me do Desconhecido” – Foto: Divulgação

Luis Eduardo Leal*, especial para o Roque Reverso

Dor e arte, de mãos dadas, talvez sejam expressões humanas quase tão antigas quanto a capacidade de figurar os primeiros animais de caça no fundo de cavernas. Um filme sobre música e músico construído sobre o silêncio da introspecção criativa, em uma espécie de ajuste de contas com um passado familiar tóxico, não tende a atrair a atenção esperada do público, mesmo quando se trata de um ídolo popular como The Boss de fato é nos EUA – nem o interesse disseminado observado em cinebiografias de sucesso recente, como as dedicadas a Fred Mercury, Elton John ou Bob Dylan.

Dito isso, “Springsteen: Salve-me do Desconhecido”, ainda no circuito de cinemas neste quase fim de mês de novembro, vale uma olhada.

O filme se concentra num recorte bem delimitado da vida do astro: o breve intervalo entre o estouro massificado de “Hungry Heart” – no filme, ele aparece quase como um “one-hit wonder”, com o nome da canção gritado nas ruas por onde passava, ainda que seus shows já fossem conhecidos pela energia, extensão, entrega – e as reflexões sobre a infância que inspirariam “Nebraska”, o álbum de estúdio que ele, com a ajuda meio a contragosto do empresário, acabaria por impor à gravadora nos próprios termos defendidos por Springsteen – um disco longo, lírico e autoral como outros que fez e faria, mas melancólico e profundamente introspectivo, composto em estúdio caseiro de quatro canais, em total reclusão.

Como mostra o filme, numa queda de braço com a gravadora, Bruce, o herói da classe trabalhadora americana, determinou que não houvesse turnê, foto sua na capa nem divulgação específica do disco. Lutou e venceu, como se esperava, lá atrás, que seria o caso também no materialismo dialético do uni-vos.

A história pessoal, conforme narrada no filme, mostra que, naquele momento de sua vida, o coração faminto de Springsteen – como o personagem da mesma canção, que troca a mulher e filhos por uma súbita paixão de bar, e depois se arrepende – estava muito cansado. O cansaço, contudo, não o levou a perecer, mas a criar e seguir adiante.

A dificuldade de conexão – há um subplot romântico na tela, sem spoiler – espelha a depressão e a auto imersão de Springsteen na própria criação de “Nebraska”, naquele momento.

Há o subtexto de que a depressão, mesmo aguda. pode ser o alicerce de uma sublimação criativa. Seria preciso conferir com os especialistas da área, como psiquiatras, psicólogos e psicanalistas, mas a ideia funciona no filme.

E é possível lembrar alguns exemplos da vida real: me vem à cabeça, imediatamente, Chris Cornell, que compôs obras de arte profundas, como “Like a Stone” e “Black Hole Sun”, verdadeiras metáforas sobre a dor psíquica, ao longo de anos de batalha contra a depressão, que infelizmente perderia.

O paradoxo do Sol do Buraco Negro teria sido inferido por Cornell ao ouvir distraído uma notícia no rádio ou na TV – que ele entendeu mal mas elaborou, criativamente.

Fora do terreno da música popular, é possível lembrar de Robert Schumann, que compôs diversas peças para piano intensamente líricas e belas, algumas inclusive no isolamento do sanatório para onde foi levado após uma tentativa de suicídio, ao se atirar de uma ponte no Reno, em 1854.

Nos termos da época, foi diagnosticado com “melancolia psicótica”, mas pode ser que seus problemas mentais derivassem da sífilis, o mal do século 19. Morreria aos 46 anos, em 1856 – Cornell se foi aos 52, em 2017.

Impressionante sentir que, mesmo na dor, grandes artistas são capazes de transfigurá-la em beleza quando se sentem em condições de criar – o que não é o caso, sempre, como comprova a própria vida de Schumann, que alternava lucidez com períodos em que mesmo, compulsivamente, o que criava era recebido com a suspeita do “demoníaco”. Ou seja, a obra tida como não lúcida não pôde sobreviver ao teste do tempo, foi relegada.

“Os sons estão além das palavras”, dizia Schumann. Mas as palavras também têm sua força própria, especialmente quando combinadas à melodia. “Nos meus olhos, indispostos, em disfarces que ninguém conhece se esconde o rosto; mente a serpente, e o sol na minha desgraça”.

RIP Cornell. Muitos sempre amarão o teu legado, como também a Schumann.

Numa junção, das histórias citadas no texto, o Roque Reverso traz abaixo o trailer do filme sobre Bruce Springsteen, a cantora Nora Jones fazendo em show uma homenagem a Chris Cornell e o próprio eterno vocalista do Soundgarden em apresentação solo e com o Audioslave, em dois momentos distintos.

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