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São 59 anos de parceria sempre mantida no limite. A famosa montanha-russa de emoções sempre dominou o ambiente, com direito a agressão física, expulsão da banda e sem um mísero jantar familiar, muito menos uma cerveja no boteco.

Pete Townshend e Roger Daltrey já foram amigos, já se odiaram e hoje apenas se toleram, pois ainda ganham muito dinheiro mantendo The Who na ativa. São visões diferentes de vida e da arte, e que nem sempre se complementam, por mais que os resultados sejam bons na maioria das vezes.

Por coincidência, os dois terão lançados no Brasil, no começo de agosto, seus mais recentes livros. “Era da Ansiedade” (Rocco Editora) é o terceiro livro de Townshend e seu primeiro romance; “Valeu, Professor Kibblewhite” (editora BestSeller) é a autobiografia de Daltrey escrita em parceria com jornalistas.

Alguns críticos de jornais tradicionais do Brasil enxergaram trocas de farpas quando dos lançamentos na Inglaterra, ocorridos em 2018 e 2019. Era esperado que isso ocorresse, mas não aconteceu.

 Townshend quase que ignorou o parceiro na autobiografia “Who Am I”, de 2015, e comentou apenas as diferenças de visão de mundo em entrevista quando do lançamento do romance. Não foi uma alfinetada, como pretendeu a Folha de S. Paulo.

Roger Daltrey (esq.) e Pete Townshend na promoção de um show em Londres (FOTO: DIVULGAÇÃO)

“Quando você usa o termo ‘projeto do Who’, eu rio, porque você assume que Roger Daltrey vai me seguir em qualquer caminho artístico ou sociopolítico que eu tome”, afirmou o guitarrista Townshend a um jornal inglês em 2019. “Eu não tenho esse poder. Roger e eu refletimos a polarização. Eu sou um liberal de esquerda. Roger é mais do centro, possivelmente de direita.”

Foi uma resposta mais educada a respeito dos embates que ambos tiveram ao longo de seis décadas. Daltrey, por sua vez, não foi agressivo em sua autobiografia. Tratou o companheiro com respeito, mas deixou clara que a sua visão de mundo diverge frontalmente, até por conta da origem social dos dois.

Filho de uma família pobre do oeste de Londres, Daltrey sempre se orgulhou de pertencer à classe operária. Teve vários subempregos na juventude e esteve perto de virar um delinquente. “A vida era dura naqueles tempos de adolescência. se não fosse o Who e o rock eu teria virado um bandido”, declarou certa vez ao jornalista inglês Chris Charlesworth.

Para Townshend, filho de classe média intelectualizada e aluno de faculdade de artes, sobrou apenas uma fina ironia em “Valeu, Professor Kibblewhite”. “Fodido, para Pete, queria dizer continuar sua graduação em arte, o que significava ficar o dia inteiro deitado na cama fumando maconha e comparecer à aula do momento para imaginar o mundo do ponto de vista de uma esponja. Fodido, para mim, era algo bem diferente. Eu não estava na faculdade. O Estado não limpava meu rabo. Eu tinha uma visão bem diferente da vida. Daí, diferenças musicais.”

A coisa já foi bem mais complicada. Roger Daltrey criou os Detours em 1962 como guitarrista e também eventual vocalista. O rock era a base, mas a ideia era encharcar o som com muita música negra. 

Criado o grupo, logo entrou um magrelo bom de guitarra, baixo e sopros. John Entwistle era um músico nato e logo percebeu várias deficiências. Daltrey não tocava nada e foi convencido a aceitar um amigo,  outro magrelo, como guitarrista e violonista. Townshend chegou e tomou conta, empurrando o fundador para os vocais.

Com a entrada de Keith Moon, o baterista insano, em 1964 e com o nome The Who, o quarteto estava pronto pra ganhar a Inglaterra, mas Daltrey tinha dúvidas. 

Com a pose de aluno universitário e artista intelectual, Townshend não inspirava confiança e mostrava um comprometimento menor do que o necessário para fazer a banda virar. 

Daltrey achava que a banda era a grande chance de fugir na pobreza, dos empregos ruins e de uma vidinha medíocre. Mais do que isso: precisava fazer dinheiro porque já era pai aos 20 anos de idade

Briguento e arrogante, o cantor queria dirigir o Who com mão de ferro mesmo não sabendo compor. Acabou isolado como o chato da banda e foi expulso de seu próprio grupo em 1965 depois de esmurrar Moon por conta de uso de anfetaminas – Daltrey sempre foi o “careta” da banda.

Perdoado de dias depois, voltou mas manso, mas igualmente chato na disputa por poder com Townshend, o principal compositor. As tensões nunca amainaram mesmo após ganharem muito dinheiro e se tornarem mundialmente famosos. Brigavam em público e discutiam feio nas entrevistas coletivas.

O baixinho briguento e controlador perdeu a paciência em 1973, em um ensaio para a turnê “Quadrophenia”, do disco de mesmo nome. 

Meio bêbados, ele e o guitarrista discutiram sobre a falta de comprometimento de ambos para os shows e Daltrey nocauteou Townshend quando este o ameaçou com golpe de guitarra. O guitarrista caiu, bateu a cabeça na ponta do tablado da bateria e apagou. O vocalista se desculpou horas depois, no quarto do hospital.

Por outro lado, Roger Daltrey sempre foi imensamente grato por Townshend apoiá-lo em sua carreira solo de sucesso, iniciada ainda nos 70, em paralelo ao Who, e na sua carreira cinematográfica – isso, curiosamente não está no livro autobiográfico.

Townshend já manifestou publicamente a sua gratidão pela amizade do cantor quando do encerramento das atividades do Who em 1982 (o grupo voltaria em 1989).

Viciado em drogas e álcool, Townshend foi para a reabilitação e foi convencido a ficar longe das turnês para não ter uma recaída. Foi Daltrey quem sugeriu essa saída, para desgosto de Entwistle.

“Valeu, Professor Kibblewhite” (título sarcástico se refere a um professor do ensino fundamental do cantor que lhe disse: ‘você nunca será ninguém na vida’) é uma biografa tradicional, reta e cronológica, e, de certa forma, decepcionante por não conter fatos novos ou bombásticos. Nada revelador e nada muito profundo, com o cantor valorizando a sua trajetória e agradecendo ao Who pela vida de rockstar. Apesar de algumas considerações mis críticas, Townshend é tratado com carinho e respeito.

“Era da Ansiedade”, por sua vez, é uma empreitada ambiciosa do guitarrista, considerado um intelectual do rock. Escreve bem, tem ideias interessantes a respeito da arte e da vida e sua obra musical é de altíssima qualidade.

A ambição literária, contudo, tem a mesma proporção da prepotência na elaboração do romance. Como conceito e como roteiro, digamos assim, é confuso e carece de dinâmica ao abordar o assunto música por uma ótica quase acadêmica.

O músico se propôs a descrever música em letras, enquanto conta a história de Walter, um músico de relativo sucesso que passa a escutar sons misteriosos vindos da sua plateia. Ele tentará transformar aqueles ruídos em música.

“As ‘paisagens sonoras’ escritas por Walter, que ele ouve quando encara a audiência nos shows, tinham que funcionar tanto como trilhas musicais quanto como passagens descritivas”, contou Townshend, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.

O narrador do romance é um homem mais velho, Louis, padrinho de Walter, que tem um segredo e por isso resolve pôr sua história no papel. Enquanto os anos passam, uma série de figuras femininas importantes passeia pelas vidas dos dois, e a história de um estupro pode voltar para assombrar.

Na sua ambição literária, Townshend não fracassa, mas peca ao buscar uma inovação estilística em uma história rocambolesca e não muito digerível. Não é má literatura, longe disso, mas fica aquela fagulha de que “eu esperava mais vindo de quem veio”.

A autobiografia de Daltrey é um livro que vai interessar quase que somente os aficionados por rock, já o cantor é muito popular na Europa e nos Estados Unidos, mas bem menos conhecido como artista solo no Brasil.

Clique aqui para ler uma entrevista de Pete Townshend para o jornal O Globo.