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 Marcelo Moreira



A guitarra é a salvação da juventude  e da cultura ocidental. A frase foi escrita em um muro de Londres, no início dos anos 70, parafraseando/adaptando um dito popular de maio de 1968, em Paris.

 A juventude e os estudantes tocaram o terror na capital francesa, ensaiaram dominar o mundo na capital inglesa e em Nova York, mas, no fundo, nada mudou e os mesmos de sempre continuaram e continuam mandando no mundo. Mas a guitarra cresceu e se tornou um dos maiores símbolos da cultura ocidental. Para muitos, é sinônimo de cultura ocidental.

Quem um dia poderia imaginar que o instrumento característico da juventude do século XXI estaria em vias de ser substituída por aplicativos ridículos de telefone celular e por programas artificiais e desalmados de computador, retirando toda a sofisticação e inteligência da música?

Avanço inexorável da tecnologia? Modernismo em marcha, da mesma forma que as vertentes populares de música empurraram a música erudita para nichos? Da mesma forma que o rock fez com o blues,o jazz e algumas vertentes da country music?

Sofisticação e elegância não são produtos à disposição de todos. É preciso um pouco de interesse e informação – seria bom gosto? – para apreciar determinados tipos de cultura, diriam intelectuais ligados às ciências humanas – os mesmos que, contraditoriamente, acham méritos em coisas absurdas como o funk carioca, mas ao mesmo tempo preconizam certo “estofo” para apreender obras mais específicas.

E o onde entra a guitarra nesta história? Corremos o risco de ver o instrumento-chave da cultura rocker e da cultura pop ocidental perder a sua relevância?

É o que insinua o músico inglês Steven Wilson, guitarra e vocalista que criou e enterrou a banda Porcupine Tree, nome fundamental do rock progressivo e da música de vanguarda do século XXI.

O músico não vê um futuro promissor e vaticina: as guitarras vão entrar em extinção, de acordo com suas declarações à revista/site under the radar. “Vivermos no mundo eletrônico. Todo o som que ouvimos diariamente ao nosso redor é eletrônico. Meus filhos, eles não ouvem guitarras a não ser que eles decidam especificamente ouvir a uma música com guitarras. Tudo ao redor deles desde o som que os iPads fazem até os sons vindos da TV e as campainhas. Que lugar tem a guitarra ou o baixo ou a bateria em um mundo como esse? Bom, a cada vez menos e menos.”

De outras maneiras, mas com o mesmo sentido, artistas de rap e rhythm and blues dizem a mesma coisa desde a década passada, tanto que as paradas norte-americanas são todas dominadas por esses gêneros, a ponto de o jazz, blues e country criarem paradas de “sucessos” específicas para fugir desse predomínio.

O avanço do mundo eletrônico em nossas vidas é um fato, embora a maioria das pessoas ainda não perceba que os sons artificiais e criados nos computadores, vomitados por aplicativos, esteja realmente dominando tudo. Quando foi que deixamos de perceber tudo isso?

Ao longo dos quase 70 anos de rock, um fato inconteste foi o de que a indústria de equipamentos musicais avançou muito, mas se manteve com base e,m instrumentos que, basicamente, são os mesmos de décadas arás. Modernos, mas os mesmos – quando muito, com mudanças de design.

Guitarra, baixo, bateria e piano correram, riscos com o surgimento de vários tipos de teclados e sintetizadores, mas, de uma forma ou outra, sobreviveram bem. 

Quem sofreu com isso foi a orquestra sinfônica/filarmônica e suas variantes – quarteto de cordas, octeto, cameratas, naipe de metais e afins. Malucos como Rick Wakeman e Keith Emerson eram capazes, sozinhos, de soar como cinco orquestras rodeados de sintetizadores, uma revolução e tanto na forma de ouvir e consumir música. 

Um celular vai ser capaz de substituir a guitarra, ou o baixo? Nossos filhos vão mesmo abandonar o mundo analógico e preferir os barulhinhos artificiais? Isto já está acontecendo mesmo?

Não dá para ter ilusões de que uma Gibson Les Paul ou uma Fender Stratocaster se mantivesse intocadas por 100, 200 anos, da mesma forma que jamais esperaríamos que aviões e carros se mantivessem fossilizados com design e tecnologia dos anos 30. 

É duro saber que veremos a morte da guitarra como a conhecemos, e não vai demorar muito. Por que não percebemos isso antes.

Steven Wilson é um homem inteligente e culto, um dos profissionais da música mais preparados para um futuro diferente e instigante. Domina a guitarra, o baixo, o teclado e uma série de computadores e programas musicais. Sabe exatamente do que está falando.

A questão que se coloca é a seguinte: nós, roqueiros, estamos preparados para a decadência da guitarra, que pode estar vindo de forma acelerada?

Será que não teremos mais os nossos heróis da guitarra, como Kiko Loureiro, Pepeu Gomes, Robertinho de Recife, Edu Ardanuy, Rafael Bittencourt, Eric Clapton, Jeff Beck, Eddie Van Halen, David Gilmour, Brian May e todos aqueles que amamos admirar e curtir desde sempre?

Um mundo sem guitarra é o mesmo que um mundo sem livros, sem cinema, sem peças de teatro, sem quadros maravilhosos. 

Viver em um mundo ditado por computadores e seus sons mecânicos e artificiais, emulando as piores distopias de ficção científica, é uma perspectiva sombria demais.

O que sobra da música sem a guitarra, sem a pulsação marcante e necessária de um baixo, ou a avalanche sonora de uma bateria? Como é possível saber que não existe mais um piano?

Ok, há a perspectiva de que tenhamos equipamentos sonoros tão avançados tecnologicamente que os tibres e sons de tais instrumentos analógicos elétricos possam ser reproduzidos fielmente pelo computador, assim como as pilhas de teclados de Rick Wakeman reproduziram quase que de forma idêntica o que uma orquestra sinfônica com 40, 60 ou 80 instrumentistas faziam. Mas será a mesma coisa?

Da mesma coisa que maestros e músicos muito competentes sacam na hora a diferença entre um piano Steinway legítimo e um teclado Casio, ou Roland, conseguiremos distinguir o que é uma guitarra bem tocada ou a expressão de um programa de computador que capturou e reproduziu quase que perfeitamente timbres de um instrumentista como Gary Moore, por exemplo?

Um mundo sem guitarras será um mundo mais pobre, menos poético e menos intenso, embora não necessariamente menos musical. 

Talvez tenhamos menos bandas, menos artistas solo e até mesmo bem, menos rock, como observamos hoje por aí. Talvez seja inexorável que a modernidade dos próximos anos e o avanço tecnológico releguem, mais cedo do que imaginamos, o rock para um nicho específico de ouvintes/consumidores, como j´pa ocorre com o jazz e com blues. A perspectiva não é das mais instigantes. 

Um mundo sem guitarras me parece algo que sempre estará fora de ordem, como o futebol com o VAR (arbítro de vídeo), que o transformou em outro esporte (na verdade, criou outra modalidade,a que ão tem erros, em teses, enquanto a maior parte do mundo, por falta de dinheiro, ainda se vira sem o VAR).

Provavelmente não deixaremos de ouvir música no futuro. Vamos ouvi-la de outra forma, mas ficará faltando algo, que é muito crucial para muita gente. Que esse futuro demore bastante para chegar.