Escolha uma Página

Malvada (FOTO: DIVULGAÇÃO)

A capa do LP era bem simples: uma moça jovem e bonita, vestida com uma roupa de couro, com o zíper aberto até o meio do tórax, tudo em preto e branco. Muito simples, mas muito expressiva essa capa: a foto exalava poder, sensualidade e uma certa afronta.

Nunca uma mulher tinha aparecido de tal forma, com tanta força, em uma capa de disco. E então Suzi Quatro decolou e virou um ícone da mulher no rock, especialmente o rock pesado dos anos 70.

Mais do que Janis Joplin, Suzi chutou os portões do machista e misógino mundo do rock mostrando que uma garota bonita podia tocar bem, liderar uma banda e ser sexy, tudo isso ao mesmo tempo. Era 1972 e seu primeiro álbum era mais do que uma declaração de intenções. Era uma declaração de guerra.

Desde então os machos do rock adoram sentar em uma mesa de bar e dissecar as bandas femininas ou com cantoras para tentar identificar os seus “pontos fracos”. Só fazem sucesso porque são bonitas? Por que se vestem como peruas e barbies no palco? Por que fazem sexo com as pessoas certas e influentes? Por que alguém toca bem no lugar delas?

Debbie Harry (Blodie) e Stevie Nicks (Fleetwood Mac) passaram por isso, mas pavimentaram e consolidaram o caminho aberto a machadadas por Suzi Quatro.

As Runaways usaram e abusaram de sua sensualidade supostamente ingênua, aproveitando a beleza tipo lolitas de Cherie Curie, Joan Jett e Lita Ford. Já as inglesas do Girlschool apostaram no despojamento e na falta de glamour para detonar o seu hard rock duro e desprovido de suavidade. Quem estava certa?

A discussão é interminável e termina, obviamente, sem conclusão. Doro Pesch (Warlock) e as meninas da banda Vixen nunca se recusaram a aproveitar o fato de serem bonitas para alavancar as carreiras. Se Elvis Presley fez isso, assim como Jon Bon Jovi, Roger Daltrey (The Who) e Robert Plant (Led Zeppelin), por que elas não poderiam?

E o que dizer do mestre maior da sensualidade do rock, com seus lábios lascivos que se tornaram o logo tio dos Rolling Stones? Será que desqualificar Mick Jagger pelo que ele se tornou? Canta mal o cidadão? Dá para dizer que ele é ruim como u mestre do entretenimento no palco?

O debate é bom na mesa de bar, mas inútil do ponto de vista prático na tentativa de analisar a qualidade do trabalho de mulheres no rock. E a discussão ressurgiu recentemente nas redes sois roqueiras do Brasil, onde pipocaram críticas, digamos assim, sobre o que vem a ser a “sexualização” da imagem feminina nas campanhas de divulgação de alguns trabalhos de mulheres ou bandas femininas. Por que isso agora, de novo? E qual a novidade?

Suzi Quatro prestes a estourar na Inglaterra, em 1972 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Apelação ou vantagem mercadológica?

Em ambientes roqueiros distintos, aparentemente sem comunicação entre as comunidades virtuais, homens e mulheres questionaram a “validade” do apelo à beleza e à sensualidade. Somente em um grupo no Facebook, frequentado por fãs de metal mais velhos foi citado duas vezes: o quarteto paulistano de death metal Crypta, onde as meninas foram chamadas de “barbies do inferno”, em tom pejorativo, em alusão às fotos em que aparecem maquiadas e com semblantes de “fúria extrema”.

Em outros ambientes, outros alvos eram as bandas Malvada e The Damnnation, embora não fossem nominalmente citadas. No caso da Malvada, os pruridos acabaram de lado quando alguém mencionou uma integrante que participou de reality show de TV (Angel Sberse, vocalista da Malvada, no The Voice Brasil, da TV Globo) que “adora aparecer com decotes generosos em fotos promocionais”.

Em circunstâncias normais, seria ridículo dar atenção a esse tipo de machismo anacrônico e medieval em pleno século XXI. Mas não são tempos normais, pois temos de conviver com vários níveis de fascismo, com as tentativas de normalização do racismo de todo o tipo de atentado aos direitos humanos vindos de uma extrema-direita que está no poder e que faz de tudo para se alicerçar em fundamentos religiosos igualmente medievais.

Neste contexto, qual a surpresa então quando ouvimos e lemos ataques a uma suposta “sexualizaçao” no rock atual, em alguns países ou em determinadas áreas do entretenimento e da música?

Esse tipo de argumento rasteiro e com parcos argumentos vem servindo, por exemplo, para desqualificar o trabalho de cantoras como Anitta, Ludmilla e Pablo Vittar. Parece proposital que essa seja uma forma de abordar as obras em vez de analisá-las em por sua (falta) de qualidade.

Sim, é conversa fora de moda querer ignorar que o visual compõe e é fundamental para que a maioria dos artistas faça sucesso e ganhe dinheiro. Isso não significa que devamos escantear ou marginalizar situações em que obviamente há excessos de todos os tipos, quando não verdadeiras armações.

Anda circulando com proeminência uma frase atribuída a Amy Lee, a cantora e líder do Evanescence, a respeito das dificuldades e preconceitos que diz sofrer na indústria do entretenimento. “A quantidade de roupa ou a relevância disso é usada para questionar se eu realmente sou a autora das músicas que componho”, teria declarado a cantora americana.

Se não podemos ignorar essas e outras dificuldades que as meninas enfrentam nas tentativas de viver de rock e mostrar o seu trabalho, também não podemos exagerar na “criminalização” da utilização de subterfúgios”, digamos assim, na divulgação/valorização de trabalhos.

É crime realçar a beleza dos artistas? Até que ponto isso depõe contra cantores e instrumentistas? Será que sempre deveremos questionar a qualidade dos trabalhos dos rostinhos bonitos dos filmes americanos e novelas brasileiras?

Tempos atrás, uma conhecida cantora brasileira, Tibet, da banda Ajna, escreveu o seguinte nas redes sociais: “O Rock Feminino não precisa de caras, bocas e bunda bonita..precisa de atitude e som bom…não à sexualização do Rock Feminino…cansei de ouvir que Rock Feminino só faz sucesso por questões de sexualidade..#manipulaçãomasculinanão #rockfeminino #nãoàsexualização #atitudemetal.” (não concordo, acho uma discussão fora de propósito, mas respeito o ponto de vista.)

Robert Plant no auge do Led Zeppelin, nos anos 70 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

As hashtags poderiam indicar que se tratava do início de alguma campanha, mas era apenas um desabafo de algo que a incomodava. A que ou a quem ela se referia? Podemos apenas especular, mas alvos de seu desabafo não faltam no cenário pop rock brasileiro.

Fernanda Lira, ex-baixista e vocalista da Nervosa e hoje na Crypta, comentou certa vez, no programa Combate Rock, os perrengues que ela e as companheiras passavam no palco e no backstage por serem mulheres fazendo metal extremo.

“Já passei por situações de preconceito, machismo e até misoginia”, relembrou a baixista. “Em alguns momentos parece que temos de fazer bem mais para mostrar sabemos tocar e que somos boas. E a gente sempre passa por cima das dificuldades e isso nunca impede de sermos quem somos e de nos vestirmos como achamos que devemos nos vestir. Eu sou mulher e quero me valorizar de todas as formas, gostem ou não de nosso som ou de nossa atitude.”

A sensualidade como subversão

Bruna Tsuruda, guitarrista da Malvada, destaca que o rock and roll sempre trouxe uma linguagem “sensual”, tanto no som como na imagem, coisa que fez parte da história da música desde sempre. E, sim, a sensualidade é um elemento subversivo dentro da arte, seja para afrontar, seja para comover ou mesmo para excitar – algo tão humano e tão evidente.

“Elvis Presley era um símbolo sexual, por exemplo. Usava e abusava da sua imagem de galã pra conquistar o público”, exemplifica Bruna. “Claro que o som era incrível, mas a imagem teve sua relevância. Robert Plant tocava com o peito todo de fora, isso também não faz do Led zeppelin uma banda ‘apelativa’, que precisou disso pra chegar aonde chegou. Axl Rose tocava de cueca, Angus Young fazia striptease no meio do show, os caras do Kiss tocavam com o peito de fora…”

Ciente de a Malvada é alvo de críticas ou de simples maledicências invejosas, Bruna Tsuruda resume de forma simples o que se passa. “Acho de verdade que essa galera que nos criticou, nos acusando de sexualizar o rock, não ouviu nosso som. Nosso som é bom, honesto e diferente de qualquer coisa que esteja acontecendo nesse país hoje. Também duvido muito que essas pessoas não gostem de nenhum dos exemplos que citei anteriormente… quando é com mulher, não pode? Somos cuidadosas e seletivas, já que quando uma mulher tenta ser sexy é apelação; quando um homem tenta, só é sexy mesmo…”

Ma Langer, baixista da Malvada, entrou na conversa e sintetizou de forma mais direta e contundente: “Nossa música ‘Quem vai saber1, terceira faixa do nosso primeiro disco, fala exatamente disso: “Vai julgar o que vê?”. E nós mulheres somos julgadas por tudo o que fazemos ou o que não fazemos.”

A vocalista Angel Sberse arrematou: “Quer dizer então que pra gente ter sucesso tem que ser feia e se vestir mal? Não entendo essa relação no rock… A imagem está totalmente ligada ao artista, e nos preocupamos muito com isso. Somos mulheres vaidosas e queremos sim estar lindas, atraentes e gostosas, e isso não interfere no som ou na performance. Eu diria mais: é um BAITA vantagem inclusive! Espero que um dia essa visão equivocada mude, um pouco de sororidade seria ótimo, quem sabe um dia…” 

Conversa sem fim e inconclusiva, soa deslocada desde sempre a partir do momento em que percebemos que a sexualização/sensualização sempre dominou os ambientes do entretenimento, especialmente quando se fala em cultura popular. Cinema, teatro, televisão, artes plásticas… e por que não na música?

Por que o apelo á beleza e a um certo erotismo se tornou uma forte arma de desqualificação de desafetos e invejosos? O rock nunca cansou de ser sexy. Por conta disso, apreciemos sem moderação os ótimos trabalhos de Malvada, Crypta, Ajna, Nervosa, The Damnnation…