No meio do caos e da desilusão, a arte redime e renova as esperanças. Foi assim quando o violinista espalhou esperança e compaixão em Roma, na Itália, durante a pandemia de covid-19, ou no caso das cantoras ucranianas cantando após um bombardeio em Kiev em um abrigo antiaéreo. E também quando o mímico entreteve crianças judias em fuga dos nazistas em plena França ocupada na II Guerra Mundial.
A mesma arte que redime e dá esperanças é a primeira vítima da guerra cultural empreendida pelas forças do atraso e da destruição contra o mundo civilizado. Tem sido assim em muitos lugares do mundo atualmente, assolados pelo fascismo, pela perversidade e pela desumanidade, tudo reforçado pela escuridão e podridão do governo americano de Donald Trump.
A cidade de São Paulo está em plena guerra cultural contra artistas e a liberdade de expressão nos meses iniciais do segundo mandato de Ricardo Nunes (MDB) como prefeito. Primeiro foram as investidas para descaracterizar a Virada Cultural; depois vieram a censura em eventos da prefeitura e a tentativa de “cancelamento” de uma feira literária por motivos político-ideológicos.
O alvo agora é o Teatro do Contêiner, (também conhecido como Teatro Mungubpa) espaço artístico criado no centro da cidade, nas imediações da Cracolândia, um oásis de paz de humanidade em meio à degradação, à violência e ao preconceito. A iniciativa sempre foi um sucesso e servia como resistência às políticas de higienização social e limpeza étnica que sempre caracterizaram várias administrações municipais.
A prefeitura tenta desde o ano passado desalojar e inviabilizar as atividades do teatro do Contêiner, que tem amplo apoio de entidades progressistas. A alegação é de que a área ocupada pelo teatro será destinada a um projeto habitacional popular, por mais que nunca tenham sido divulgados os detalhes d projeto.
As desconfianças de que se trata de uma mera iniciativa para cessar as atividades de um bando de artistas progressistas na Cracolândia ficou reforçada por uma fala recente do vice-prefeito, Coronel Mello, de que o teatro será removido para dar lugar a “um parque”.
A visão que a administração paulistana tem da cultura fica explícita em lamentável artigo do secretário municipal de Cltura, o lamentável Totó Parente, em artigo no jornal Folha de S. Paulo. Ali, n texto, afirma que os artistas e cidadãos que lutam pela permanência do teatro são adeptos da “cultura da baderna”. Leia mais aqui.
Após alguns adiamentos, finamente a prefeitura deu um ultimato aos artistas e iniciou efetivamente as medias para desativar o teatro. A administração4 afirma u tentou negociar a transferência do empreendimento para outro local, mas que todas as propostas foram rejeitadas.
Os artistas confirmam a informação, mas dizem que os locais sugeridos eram deliberadamente impróprios para a atividade artística, “como se fosse mesmo a intenção de acabar com o teatro”, conforme declarou um deles. A prefeitura recusou o pedido para suspender por quatro meses a desativação e retomada do local onde fica o teatro.
Esse capítulo da guerra cultural é o mais perverso até agora empreendido contra o conhecimento, pois se tratava de um pouco de luz e esperança em um local degradado e abandonado por anos pelo poder público.
O Teatro do Contêiner também tem uma importância social por ajudar amenizar a tragédia que é a Crcolândia, oferecendo algum tipo de suporte para a atuação de voluntários e organizações não governamentais (ONGs). A atuação incomodava demais a administração conservadora de Nunes.
Em julho, mês do rock, a banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo teve o som cortado e um vídeo interrompido no telão durante uma apresentação em um minifestuival promovido pela prefeitura de São Paulo. A banda manifestava apoio aos palestinos6 vítimas de massacres israelenses no momento em que teve a apresentação afetada.
No começo de agosto, a Flipei (Feira Literária Pirata das Editoras Independentes) teve de mudar de local às pressas por causa de uma determinação dos administradores do Palácio das Artes, no centro da cidade.
O local é vinculado à administração municipal e a uma fundação e tinha acertado um contrato para a realização do evento havia mais de um ano. O rompimento do acerto ocorreu às vésperas da Flipei, reforçando as suspeitas de que tenha sido deliberado para inviabilizar o evento.
Abraão Mafras, diretor da Fundação Theatro Municipal, declarou que “espaços da prefeitura não podiam ser usados para atividades político-ideológicas”. A uma explicação estapafúrdia e revela o quanto a prefeitura é incompetente ao não ser capaz de avaliar para quem aluga ou cede espaços com antecedência.
A cruzada contra as artes e a cultura não é exclusividade da capital paulista. Outras iniciativas de guerra cultural podem ser identificadas em muitas cidades da Grande São Paulo e indicam que a campanha eleitoral de 2026 já começou de forma a alargar o fosso entre a civilização e as forças do atraso. A guerra cultural está em pleno vapor e não terminará nunca, pelo jeito.