O futuro está margem, no subterrâneo ou na próxima esquina. Com o lema “longe é um lugar que fica logo ali”, a banda paulista Manger Cadavre? Transforma o mundo do rock underground do rock em um ambiente fervilhante e em constante movimento, ainda que não seja parcialmente sustentável para quem faz música extrema. Entretanto, a força e a resistência estão ali
“Não dá para pensar a cultura como um bloco monolítico e estanque. Tem muita coisa acontecendo no rock, principalmente no Norte e no Nordeste com circuitos e cenas muito interessante. É no subterrâneo que a arte marginal e de rua está a mil por hora”, comenta empolgada Nata de Lima, a combativa e engajada vocalista da banda Manger Cadavre?, de São José dos Campos, que faz heavy metal extremo com elementos de punk e hardcore. Ela também costuma afotar o nome artístico Nata Nachthexen
O grupo é feroz, com letras impiedosas que não poupam o meio político e os responsáveis pela pobreza e pela obscena desigualdade social no Brasil e no mundo. Abordando temas quase sempre com um viés progressista, faz um som violento que vai além daquele praticado por Ratos d Porão e Black Pantera. Curiosamente, os álbuns têm um olhar levemente positivo e em busca de alternativas.
E então vem, o contraste com a pancadaria sonora e a agressividade das letras. “Para fazer o underground virar é preciso paciência e conversar muito. É assim na vida e temos percebido que é necessário falar muito para explicar as coisas para pessoas desinformadas e que são vítimas de lavagem cerebral de extremistas. A maioria dessas pessoas não é má e aceita conversar. Acredito firmemente no diáloo”, explica a cantora em entrevista ao Combate Rock.
Vocalista quase por acaso e incentivada por amigos que viram potencial no vocal “desgracento” e podre” da música extrema que ela adotou, Nata é uma figura proeminente no meio cultural do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, e atua como musicista, ativista político-cultural e agitadora no sentido de promover eventos.
A condescendência, digamos assim, para conversar e debater com opostos – não os extremos – para ficar deslocada quando se escuta pedradas como os álbuns “Imperialismo”, um primor de demolição de cânones político e neoliberais, e principalmente em “Como Nascem os Monstros”, álbum deste ano e que traz a banda mais pesada e com um som mais refinado, apesar de brutal.
Com quase duas décadas de existência, Manger Cadavre? (você come cadáver, em francês) buscou novas influências e agregou temas diferentes do habitual. “Quando fazíamos hardcore, a mensagem tinha de ser direta, como no punk, sem meias palavras. Acho que nosso som evoluiu, está mais diversificado e sofisticado, o que me permitiu experimentar mais e incluir analogias e metáforas em temas mais densos e até introspectivos”, diz Nata.
“Como Nascem os Monstros” é quase um tratado sociológico embalado com uma trilha violenta e pesadíssima. Se é mais refinado, não perdeu a essência contestadora, de crítica social. É o álbum que coloca a banda no patamar de necessária” nos dias tão difíceis e perigosos como os da atualidade.
Com várias turnês nacionais e uma pela Europa, Manger Cadavre? É uma banda que confere extrema dignidade ao underground da música extrema – por mis que rejeite extremismos nos campos político e social. Com o prestígio adquirido, tornou-se referência de integridade, ativismo e qualidade nos subterrâneos roqueiros.
Clipe conceitual
“Efêmero” é o mais recente videoclipe, gravado de forma colaborativa com ajuda de amigos e orçamento quase zero. A música aborda a experiência brutal e inesperada de uma crise de pânico, um episódio súbito de medo ou desconforto intenso, que surge mesmo sem a presença de um perigo real.
Durante a crise, o corpo ativa o mecanismo de “luta ou fuga”, mergulhando a pessoa em um estado de alerta extremo que desencadeia sintomas como medo de morrer ou enlouquecer, sensação de irrealidade, ansiedade profunda, taquicardia, falta de ar, tremores e formigamento.
Para traduzir essa sensação de ameaça, a banda aparece como demônios que atentam contra a vida e só existem dentro do plano interno, na mente do protagonista.
No enredo, trata-se de um trabalhador comum, prestes a sair para o trabalho que, ao se preparar para entrar no elevador, dá de cara com a representação da crise de pânico. O personagem é interpretado pelo bailarino, Lucas Kruszynski, que é especializado em dança contemporânea e também tem cenas de atuação no vídeo e que já esteve anteriormente em outra produção audiovisual da banda, o clipe de ‘Bruxas da Noite’.
A escolha da máscara de Shiro Oni, personagem folclórico japonês, reforça o conceito central da obra. Na mitologia japonesa, os Onis são seres temidos, vistos como criaturas monstruosas e destrutivas, mas também podem assumir papéis protetores.
O Shiro Oni, especificamente, representa a dualidade entre pureza aparente e natureza cruel oculta: um “demônio branco” que simboliza a ameaça inesperada, perfeita analogia para a irrupção repentina da crise de pânico.
Agressividade, mas de outro jeito
Em ‘Como Nascem Os Monstros’ a banda fala sobre o medo como fonte primária de neuroses, aprofundando por vezes de forma direta ou subjetiva, a causa de paralisias, comportamentos nocivos para o indivíduo e como ele nos torna algozes para o outro. Na esfera política, a banda explorou sobre seu uso como fonte de persuasão para manutenção de poder e desmobilização de coletivos de resistência.
Eles também abordaram a influência dos aparatos das mídias sociais como ferramentas de manipulação e estímulo de comportamentos calcados sobretudo no medo. Por fim, o medo transforma-se em terror para aqueles que vivem em zonas de conflitos e guerras financiadas por abutres que estão no alto.
“A ideia do disco é escancarar como a violência e a alienação são alimentadas dentro de uma sociedade cada vez mais intolerante. Os ‘monstros’ não surgem do nada, eles são moldados por discursos de ódio, por abusos de poder e pela naturalização da crueldade”, comenta Nata.
Além da sonoridade intensa, o álbum também se destaca pela produção, que mantém a crueza e a urgência características do estilo, com um trabalho técnico/ refinado, dando peso e clareza aos instrumentos e à visceralidade dos vocais.
“Como Nascem os Monstros” foi gravado em setembro de 2024 no Family Mob Studios, com captação e edição por Leonardo Mesquita, mixagem por Otávio Rossato e masterização por David Menezes.