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Com frequência, meu companheiro de Combate Rock, Marcelo Moreira, aborda a utilização de canções de rock em peças publicitárias. Recentemente, ele escreveu este texto, onde ele critica o hábito rotineiro de desfigurar os arranjos originais, oferecendo ao público-alvo versões mais edulcoradas de alguns clássicos do rock.

Pois desta vez, vamos falar de um clássico da música brasileira, imortalizada na voz de uma de suas grandes cantoras: sim, é da peça publicitária da Volkswagen do Brasil, em comemoração a seus 70 anos. Para quem andava muito distraído e não viu, um resumo: a cantora Maria Rita dirige um veículo da montadora, cantando os primeiros versos de “Como Nossos Pais”, quando um outro veículo, dirigido por sua mãe, Elis Regina, surge e as duas continuam cantando versos da música.

Muita gente discutiu a utilização de inteligência artificial para recriar a imagem de Elis, morta há mais de 40 anos. Se tecnologicamente é possível, a questão é ética: a cantora concordaria em participar de um comercial assim? Há casos de artistas e celebridades que deixaram, em testamentos, os limites para utilização de suas imagens após sua morte. Bom, até o momento, não há uma legislação a respeito. Tudo que temos é que os herdeiros legais da cantora autorizaram o seu uso.

Da mesma forma, os herdeiros legais do compositor de “Como Nossos Pais” também autorizaram o uso da canção na peça publicitária. Mas aqui reside o grande problema: os trechos da letra utilizados na publicidade invertem ou pelo menos omitem o significado original da canção – um balanço geracional amargo, transformando-a em um veículo que celebra a passagem do tempo. Talvez aí resida o maior incômodo.

Belchior foi um compositor que cantou, de forma ferina, o fim do sonho hippie, criticando velhos e novos ídolos. Ao fim da vida, deu as costas para sua carreira, a sociedade e o dinheiro. Não consigo imaginar o autor de versos como “Hoje eu sei que quem me deu a ideia/ De uma nova consciência e juventude/ Tá em casa/ Guardado por deus/ Contando vil metal” aprovando a utilização não só desta canção, como a de sua imagem em uma propaganda.

Para além dos limites éticos da utilização de inteligência artificial em publicidade, cabe a nós discutirmos os limites éticos da publicidade, em si.

A publicidade não vende somente produtos, mas principalmente, vende desejos. Se, no passado, houve necessidade de se estabelecer limites para publicidade voltada para o público-infantil, ou ainda sobre produtos como bebidas alcóolicas e cigarros, também é necessário discutir quais são os limites, não só para utilização de recursos tecnológicos, como inteligência artificial, mas também de recursos de edição. É ético distorcer o sentido de uma obra para que caiba dentro do briefing estabelecido pelo cliente? A publicidade da Volkswagen serve como um ponto de partida para esta discussão.