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Caio de Mello Martins* – publicado originalmente no site Roque Reverso

“COP KILLER
For Darryl Gates
COP KILLER
For Rodney King
COP KILLER
For my dead homies
COP KILLER
For you freedom”

Trinta anos completados do álbum “Body Count” nesta quinta-feira, 10 de março de 2022. Trinta anos da estreia de Ice-T na arena do metal. Era 1992 e até hoje me lembro de sair da escola e escutar “Evil Dick” tocando na 89FM no carro da minha mãe. Eu tinha oito anos e, claro, não entendia lhufas de inglês, agora: “dick” sabia muito bem o que significava!

Cá pra nós, depois de dois minutos de música, ninguém precisava ler a letra pra saber do que a música do grupo Body Count falava. Quarenta segundos apenas com berros da putaria que o “evil dick” de Ice-T lhe arranjou, e a banda moendo atrás. Meu Deus, isso realmente está tocando na rádio??

O álbum que deveria se chamar “Cop Killer” virou homônimo, por pressão de Tipper Gore e sua Parents Music Resource Center (PMRC), de associações de policiais, de reaças e supremacistas brancos de plantão fazendo ameaças de morte a executivos da Warner e donos de lojas.

Chamá-lo de pioneiro e talvez o maior catalisador do rap-metal que dominaria a paisagem sonora do final da década (Limp Bizkit, Rage Against the Machine, Korn) não tá errado mas também não tá certo.

Ernie C é puro Jimi Hendrix solando, mas seus riffs arranham a alma. Beatmaster V é um batera de R&B, e empresta um groove a “Body Count’s in The House” e “There Goes the Neighborhood” que poderiam sair da banda de James Brown — o Soul Brother simplesmente criou as batidas mais sampleadas da história do rap.

Era a época do assassinato de Rodney King e dos distúrbios de Los Angeles. Mais de vinte anos após a marcha pelos direitos civis, seguiram-se décadas de desmonte de políticas sociais, de ações sistemáticas de abandono e encarceramento da população negra dos EUA, e um retorno do conservadorismo norte-americano encapsulado na figura de Ronald Reagan, a identidade nacional assentada nos valores tradicionais da família branca, protestante — pra quem o amor pelo dinheiro e pela arrogância ufanista não conhecia limites.

“Body Count” não conta com scraches e rapping no meio das músicas, mas a principal colaboração do rap pra esse álbum é o fato da realidade ser o principal combustível por trás das letras.

“Se você pegasse um moleque, botasse ele na prisão com um microfone e lhe perguntasse como é que ele se sente, você teria o Body Count: ‘Foda-se tudo isso, foda-se a escola, foda-se a polícia’”, disse Ice-T em 1994, diferenciando a banda de sua carreira solo, a qual segundo ele “às vezes tem inteligência, às vezes é cheia de ódio, às vezes traz questões. Mas o Body Count […] deveria ser a voz do nosso irmão revoltado, sem respostas”.

Brutalidade policial, colapso do sistema prisional, epidemia de drogas, as diversas experiências que o racismo inflige ao negro dentro da sociedade norte-americana, são temas visitados pelas músicas. Mas não adianta só explicar, o importante é ouvir: a voz de Ice-T não deixa dúvidas, o cara tá DE SACO CHEIO DESSA MERDA TODA.

É aquele mix combinando doses mortais de ceticismo, amargura, tristeza, revolta e uma pitada de humor ácido que gera a faísca criativa. E Ice-T usa esses elementos pra claro, liberar seu ódio, mas também expressar como a opressão e violência que nos bombardeia cotidianamente fazem da realidade uma dimensão do insólito e do grotesco.

É como se Ice-T tivesse se inspirado nas fantasias sádicas do heavy metal — cheias de niilismo, crueldade gratuita e imagens satânicas — para saciar sua própria sede de vingança contra tudo o que para ele representa o racismo institucional.

São fantasias grosseiras, ofensivas, sexistas, etc, e tudo o mais que os censores culturais de plantão em Washington diziam ao apontar seus dedos a artistas de rap — mal-e-mal mascarando o pânico que tinham em ver artistas negros rompendo a barreira racial e vendendo álbuns a fãs brancos.

O álbum já abre com um número de humor negro, a intro falada “Smoked Pork”: à paisana e com o carro quebrado, o vilão “Cop Killer” se vinga de um policial que diz que seu trabalho é comer rosquinhas e não ajudar “o rabo dos outros”.

Claro, é a imaginação de Ice-T juntando Punisher com Eddie Murphy; como o próprio rapper diria, “se você acredita que eu sou um assassino de policiais então também acha que Bowie é um astronauta!”

Body Count faz um belo trabalho ao unir os mundos do metal e do rap. Fãs de metal não podiam disfarçar seu sorriso de aprovação ao acompanhar Ice-T em uma excursão costa-a-costa pelo EUA distribuindo pedaços de sua mãe recém-esquartejada (por ele mesmo), após um surto detonado por apanhar da velha ao apresentá-la a “sua namorada branca”.

Do mesmo jeito, fãs de gangsta rap aplaudiam e enxugavam lágrimas — de tanto rir, no caso — escutando a ridícula história sobre como Body Count passou a patrocinar orgias com filhas e esposas de membros da KKK após anos de turnês pelo Sul dos EUA (isso sem contar na “cena” em que Ice-T aparece “infiltrado na Klan” —Spike Lee teria ouvido essa música? — transando de gorro branco e tudo).

Como toda autêntica alma irreverente, Ice-T e sua verve são como merda e ventilador, quando se juntam ninguém escapa. Destaque pra “There Goes The Neighborhood” (“don’t they know rock’s just for whites?”); “Voodoo”, besteirol completo sobre cultura afro-americana direto da cabeça mais insuspeita; e finalmente, “Cop Killer”, a música que Ice-T retirararia do álbum apenas meses depois de lançá-lo, capitulado na esteira da avalanche de censura e ameaças que envolveram até declarações de Bush Pai.

Começando com um riff Motörhead ready-made devidamente pimpado por Beatmaster V, a música causa náuseas descrevendo uma noite na vida de caçadores de tiras mascarados, alucinados e cheios de testosterona.

Milícias de assassinos são a expressão última de psicopatia e desumanização, não importa a quem servem ou quem executam. Mas anos e anos de brutalidade policial se passaram desde então, e George Floyds e Breonna Taylors e Moïse Kabagambes não param de se amontoar em pilhas, como que lembrando que a violência crua, obscena e inaceitável é a mesma dos tempos da escravidão; lembrando que Carandiru, Paraisópolis e Jacarezinho não param de demonstrar a insignificância de vidas negras pra quem detém o monopólio da força, pra quem defende o império da “ordem” sobre uma montanha de cadáveres — invisíveis e inodoros aos encastelados. E os ecos de “Cop Killer… Cop Killer… Cop Killer” nos assombra.

Obs.: eu daria meu braço pra ser uma mosquinha em 1992 e acompanhar a reunião onde Charlton Heston reuniu acionistas da Time/Warner para ler a letra de “KKK Bitch”. Senso de ridículo é um artigo escasso naquelas bandas.

* Caio de Mello Martins é jornalista