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Duas linguagens e duas visões diferentes que tentam combinar tradicionalismo, modernidade e diversidade a um mercado blues que volta a se expandir após as trevas da pandemia de covid-19 potencializadas pela fossa que é o mundo bolsonarista. E dois artistas de uma nova geração se destacam na retomada: Eric Assmar, que é bem conhecido no circuito, e Carla Mariani.

O baiano Eric Assmar bebeu bastante no blues de Gary Moore no ótimo álbum “Home”, recém-lançado. A mistura dos grooves britânico e brasileiro resultaram em um CD gostoso de ouvir, com os sotaques evidenciados e uma certa economia no virtuosismo.

Filho do também excepcional blueseiro Álvaro Assmar, Eric transforma simples canções em monumentos poderosos movidos a guitarras nervosas e pulsantes, quando não incandescentes, como na seminal “Heart of Mine”, com uma levada à la Tom Petty, e abrasiva e especial “A Simple Man”, onde as influências de Moore explodem.

O irlandês também deve ter inspirado a interessante “Childhood Days”, onde os fraseados e os riffs despojados dão um tom mis intimista a uma canção que tinha tudo pra ser apenas básica. 

A guitarra vigorosa é o destaque no blues certeiro “It’s My Own Blues” e surge alegre e faceira no reggae “Close to Me”. Na instrumental “Abraço”, o slide e os efeitos ajudam a dar uma cara mais “bossa nova” e o resultado é bem agradável.

A canção de destaque, no entanto, é a única cantada em português. “Ainda Existe Sol” tem uma pegada folk blues e uma interpretação bem brasileira e esperançosa, abrindo o horizonte pra dias melhores. Aliás, esse é o tom de toda a obra, que contrasta com terríveis dias que vivemos em nosso país. 

Houve espaço onda pra uma bela balada acústica da seara Joe Bonamassa em “Can Your Hear Me”, delicada e sensível, quase gospel, com um violão bem timbrado e uma guitarra com slide em segundo plano que demonstra toda a bagagem musical extensa do músico baiano

Eric Assmar é jovem, mas já um veterano do blues nacional tipo exportação, em que nomes como Artur Menezes, Celso Salim, Igor Prado e de outros nomes estrelados da guitarra nacional. “Home” é um trabalho sensível e impressionante que deve agradar a puristas e fãs mais abertos a experimentações.

Carla Mariani é uma cantora santista que busca de seu som agora que lidera o CM Quartet. “Introducing CM Quartet” é um disco que se destaca nem tanto pela interessante coleção de temas, mas pelo excelente trabalho de guitarras e por ser um alardeado “primeiro álbum autoral de uma cantora de blues e country” do Brasil. É uma afirmação ousada e que precisa de uma checagem, mas que chama bastante a atenção.

Com uma produção bem simples e pouco polida, Carla manifesta bom preparo e bagagem para enveredar por um blues mais modernos, com em “Ain’t Life a Bitch”, quase um blues rock, e “My Way”. 

A voz não é potente – precisa, inclusive, de uma melhor lapidação nos agudos -, mas a interpretação é correta e expressiva. Ela tem o domínio das ações, como em “Tax Money”, um blues rápido e enérgico, e também na quente e rápida “Express Yourself”.

Carla se sai melhor na dramática e tradicional “Refresh Your Heart”, um blues mais pesado e expressivo, em que as guitarras elaboram uma “cama” sólida para que o mundo “desabe”, quase esbarrando no desespero de um tango.

Se lhe falta a potência na voz, como a de Ida Nielsen ou Bidu Sous, ou a versatilidade de uma Bica Marchese, sobra-lhe inteligência para saber encaixar a sua voz em canções diretas e explosivas, como Crazy World”, Nesta, que é ou country que se aproxima de um rockabilly, a cantora dá um show.

Carla Mariani Quartet (FOTO: JULIANE PAIXÃO/DIVULGAÇÃO)

“Queria contar uma história e singles soltos, nesse caso, não contaria da forma que a história necessitava ser passada, pois seria fragmentada e sem sentido”, diz Carla Mariani no material de divulgação do disco. 

Ainda aferrada a um certo tradicionalismo, preferiu não lançar singles como estratégia de divulgação. “Na minha opinião, um trabalho completo mostra quem somos e para onde queremos ir. O público do Blues e Country Rock gosta e sente falta de trabalhos com início, meio e fim.”

O quarteto é composto por Carla Mariani, Yan Cambiucci (guitarrista e parceiro nas composições), Tanauan (baixo) e Heittor Jabbur (bateria), que costmam misturar influências que vão de  Etta James, Aretha Franklin, Ella Fitzgerald, Janis Joplin, Joss Stone, divas do blues e da soul music, a astros da country music, como Garth Brooks e Alan Jackson.

O álbum conta com diversas participações especiais como Vasco Faé (gaita na faixa “Tax Money”), Letícia Alcovér (pelo amor e backing vocals em “Landlord” e “Soul To Heaven”), Thais Ribeiro (piano em “My Way” e “Refresh Your Heart”), além de Lucas Degásperi, Carol Meles e Nathalie Rabelo (nos backing vocals em “Soul To Heaven”).

De uma forma bem humorada, ela tenta se apresentar como uma cronista de nosso tempo e tem uma visão bastante critica a respeito do atual “estilo de vida” dos jovens de classe média brasileiros – e muito disso está presente nas letras das dez músicas que compreendem “Introducing CM Quartet”.

Carla Mariani (FOTO: TIAGO CARDEAL/DIVULGAÇÃO)

Baseado em sua própria experiência, Carla vê sua geração – de 30 a 40 anos – em uma posição completamente diferente dos pais dessa geração quando tinham essa mesma idade. 

“Antigamente a meta de vida, aos 30 anos, era já ter uma vida resolvida, com emprego fixo, casa própria e carro do ano”, comenta a cantora. “Já a geração seguinte, a de hoje, preza mais pela qualidade de vida e por trabalhar em algo que realmente gosta, mesmo que isso gere uma instabilidade financeira.”

A percepção está correta, ainda mais se observarmos que a crise econômica grave que vivemos desde 2016, aprofundada pela crise sociopolítica dos tempos Temer-Bolsonaro, praticamente inviabilizam qualquer sonho de estabilidade econômica de uma juventude que encara um desemprego monstro de quase 12% da população economicamente ativa, ou seja, quase 13 milhões de cidadãos. Já a fome, que voltou com força, avança sobre ao menos 35 milhões de habitantes. “Crazy World”, de certa forma, aborda essa confusão.

“Nossa geração não tem perspectiva de conseguir uma vida financeira estável”, diz a cantora, que inicia o álbum atribuindo a desvalorização do jovem aos políticos e aos altos impostos. “É a famosa história onde o rico fica cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre. Nossa geração sofre com as altas taxas de impostos, do dólar e inflação.”

Dá para perceber também que o disco está impregnado de um saudosismo que soa um tanto deslocado, mas que faz sentido diante dos dilemas que os artistas, principalmente músicos, encaram em tempos de ultrainformação que domina as nossas vidas por conta da internet. 

O jeito de ouvir música hoje mudou, e nção necessariamente pra melhor, e isso transparece no álbum. “Hoje vivemos em uma era em que até ouvir música é perda de tempo (risos). Antigamente, nos sentávamos à frente de um rádio e ouvíamos música por horas a fio, chamávamos amigos para ouvirmos juntos e curtirmos lançamentos como se fossem verdadeiros eventos! Hoje, a maioria das pessoas não aprecia mais esse momento, pois junto a ele faz outras coisas ao mesmo tempo, perdendo aquela chance de reflexão, desvio mental dos problemas do cotidiano e se levar pelas melodias a um lugar especial. Não existe mais tempo para música! Sinto falta de músicas com letras inspiradoras, solos e melodias que saem do que hoje é considerado ‘normal’. Sempre me pergunto para quem estão escrevendo essas músicas de hoje?”

Entre os admiradores do novo trabalho de Carla Mariani está justamente Eric Assmar, que fez o seguinte comentário a respeito: “Achei esse álbum novo de uma maturidade notável em relação aos trabalhos anteriores e vejo uma ‘Carla’ talvez um pouco mais consciente de sua própria linguagem como artista.”

Segundo ele, “a sonoridade rock nos arranjos que se casou muito bem com o timbre de sua voz mais presente. É um repertório que, com certeza, crescerá muito quando tocado ao vivo com a parte da improvisação que envolve os shows de blues”.