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Sonolento, meio bêbado, o guitarrista estava em seu estúdio caseiro meio acanhado com um monte de tapes de um projeto musical fracassado. Eram restos de um delírio que lhe custou o sono, o convívio com as duas filhas bebês e muitas desavenças com os companheiros de banda – não necessariamente seus amigos, como cansou de dizer ao longo de 50 anos.

De forma totalmente improvável, das sobras do fracasso surgiu uma obra-prima, a maior de sua banda e um adas maiores do rock de todos os tempos. E então Pete Townshend teve a sua redenção.

“Who’s Next”, que faz aniversário de 50 anos, não deveria ter existido. Nem estava programado. Townshend, o principal compositor de The Who, teve se de ser convencido a criar um álbum para cumprir o contrato com a gravadora. 

É um catado, como resumiu de forma pejorativa o vocalista Roger Daltrey, que já estava em franca oposição ao guitarrista. Até hoje reluta em reconhecer a qualidade do que surgiu naquele ano de 1971 e que marcou definitivamente a história da música.

É raríssimo “Who’s Next” ficar de fora da listas sérias de 10 melhores álbuns de todos os tempos. É raríssimo suas duas principais canções ficarem de fora das listas sérias de 100 ou 500 melhores de todos os tempos – “Baba O’Riley”, a abertura, e “Won’t Get Fooled Again”, o encerramento. 

É um disco com conotações explicitamente políticas, ao contrário da obra-prima anterior, a ópera-rock “Tommy”, um disco duplo (em vinil) antibélico, pacifista, antipreconceitos e um libelo pela inclusão de pessoas com deficiências, além de ser uma crítica feroz às religiões e aos dogmatismos.

“Lifehouse” deveria ser uma espécie de continuação de “Tommy”, só que com um conceito mais elaborado e sofisticado, uma obra musical e literária de ficção científica. Só que a história tão intrincada e repleta de detalhes fundiu o cérebro do autor, Townshend, e foi a pique depois de meses de trabalho.

Mas por que deu tudo tão errado, depois que a ideia que tinha tudo para dar tão errado deu muito certo?

“Tommy”, lançado em meados de 1969, tirou a banda do buraco. Muito endividada, apostou tudo no ineditismo e na inovação e acertou em cheio. 

A saga do menino surdo, cego e mudo que vira líder espiritual depois de um milagre finalmente colocava o rock como uma forma de arte respeitável, levando adiante o que Bob Dylan já fazia com seus poemas excelentes musicados – que lhe rendera,m um prêmio Nobel quase 50 anos depois.

O dinheiro começou o entrar e a banda The Who rivalizava, finalmente, com Led Zeppielin e Rolling Stones como as melhores de sempre e da época. 

Com dinheiro no bolso e ideias fervilhantes, não havia mais limites. E então, após o final de um ano estafante de turnês europeias e americanas, a banda parou descansar em junho de 1970. Era a pausa necessária para aliviar as brigas internas. 

A coisa estava tão feia que o baixista John Entwistle ignorou as férias e partiu para a gravação de seu primeiro álbum solo, que também seria o primeiro de um integrante da banda. 

Só o baterista do Who, Keith Moon, entre os companheiros, participou de “Smash Your Heads Against the Wall”. O ressentimento foi tanto que o baixista fez questão de lançar o disco a pouco tempo de distância de “Who’s Next”, em uma atitude inexplicável, em termos comerciais.

Townshend viajou e curtiu um pouco as filhas Emma, então com quase dois anos, e Armintha, com meses de vida. Só que o tédio bateu e lá foi ele ´para o estúdio caseiro.

Cheio de ideias, de bebida e algumas drogas, criou um mundo futurístico e distópico claramente influenciado pelas obras do escritor inglês George Orwell (1903-1950), autor de clássicos como “1984” e “A Revolução dos Bichos” – esta última serviri de base para “Animals”, do Pink Floyd, de 1977.

Aos 25 para 26 anos, Townshend estava empoderado e achava que tinha estofo literário para criar a suprema obra roqueira. 

“Lifehouse”, então o nome do projeto, contaria a história de um jovem, e depois a de seu grupo rebelde, que lutaria conta a tirania de um governo totalitário que controlava todos os aspectos da vida dos cidadãos. 

As ideias revolucionárias do grupo seriam veiculadas por meio da música, então proibida no mundo essa música seria tocada e disseminada por meio de uma banda misteriosa e escondida, chamada The Who.

The Who em 1971: da esq. para a dir., PeteTownshend (guitarra), Keith Moon (bateria), Roger Daltrey (vocais) e John Entwistle (baixo)  (FOTO: DIVULGAÇÃO/EVERETT COLLECTION)

O conceito parece simples, mas Townshend resolveu rebuscá-lo e sofisticá-lo e tal ponto que ele mesmo se perdeu. No estúdio, já com parte das músicas prontas, o guitarrista e líder do The Who tentou explicar o conceito e a história para os companheiros de banda e para om produtor associado, Glyn Johns.

Produtor e guitarrista tiveram uma reunião longa em janeiro de 1971 para discutirem o que fazer. Por duas horas, Townshend tentou explicar do que se tratava a história  se irritou quando não conseguua responder a algumas perguntas de Johns.

Meio desanimado, o produtor cruzou com Daltrey e Entwistle nos corredores e contou que não tinha entendido nada do que o guitarrista tinha criado. O sorriso dos dois ao escutar isso denotava mais alívio do que sarcasmo com o “fracasso” de “Lifehouse”.

O projeto foi abortado logo depois de um concerto feito especialmente para ser incluído no projeto. Em 26 de abril de 1971, no Young Vic Theatre, em Londres, The Who tocou para uma plateia vip de amigos, admiradores e todo o estafe que sempre trabalhou com a banda. Seriam figurantes para o que pretendia ser o auge de “Lifehouse”, quando finalmente a banda de rock disseminaria a revolução e derrubariam a ditadura.

O concerto foi ótimo, mas só seria lançado oficialmente na segunda década do século XXI, como CD bônus da edição de luxo de 40 anos do lançamento de “Who’s Next”. Há dúvidas a respeito do registro em vídeo desse show – se houvesse, já teria surgido em forma pirata.

Poucas dias depois desse show, no comecinho de maio, Townshend teve um colapso nervoso durante uma reunião com os companheiros, com Glyn Johns e com os empresários. Isolado e encostado na parede, admitiu que estava em um, bloqueio criativo. 

No hospital, e depois em casa, sob recomendações médicas de repouso absoluto, aceitou a derrota e autorizou que algo fosse extraído das sessões de gravações para um LP simples como forma de cumprir as obrigações com a gravadora.

“Who’s Next” realmente surgiu das sobras de “Lifehouse”, mas jamais pode ser considerado como uma coletânea de restos, como viria a ser “Odds and Sods”, de 1974, esta sim uma compilação de singles e músicas inéditas, irregular e com material que compreensivelmente tinha sido arquivado.

Moderno, inovador, instigante e pesado, o material que foi editado conseguiu, de alguma forma, uma unidade que parecia ser impossível, mesmo que o conceito original tenha ruído. Tudo faz sentido na sequência de nove músicas, até mesmo o corpo estranho “My Wife”, de John Entwistle, a única canção que não é de autoria de Pete Townshend.

“Baba O’Riley” dá o pontapé para uma viagem serena e estupenda, com suas camadas de sintetizadores e um violino extraordinário para o solo final. Sua letra e grito de guerra e uma declaração definitiva de como a “terra devastada da adolescência” precisava ficar para trás para que a revolução começasse.

“Bargain” é uma música pesada e amarga, que esclarece os propósitos do projeto em cima de uma base melódica de guitarra hipnotizante e um baixo vigoroso, enquanto que a bateria de Keith Moon, em tom, marcial, empurra tudo para a frente.

“Love Ain’t For Keeping” é a balada folk que dá um amenizada no caos sonoro, um prelúdio rápido e romântico para a entrada do hard rock de “My Wife”, uma singela homenagem de Entwistle à esposa. Nada tem a ver com o conceito de “Lifehouse”, mas estranhamente se encaixou no disco, especialmente com seu vocal sarcástico e cavernoso, enquanto seu baixo fez as vezes de guitarra base.

Pete Townshend em seu estúdio caseiro em 1970, trabalhando nas demos que viriam a se tornar ‘Who’s Next’ (FOTO: GETTY IMAGES)

“Song Is Over” é um interlúdio necessário para a retomada de fôlego, uma balada hard em que Roger Daltrey faz uma performance irretocável, acrescentando drama e melancolia na dose certa.

O vocalista brilha de novo em um country rock que fica pesado na sua segunda metade. “Gettin’ in Tune” deveria ser o ponto alto de “Lifehouse”, quando a revolução estaria em curso, sendo impossível de ser contida, mas ainda assim cheia de dúvidas a respeito seus vários caminhos. A guitarra de Townshend aqui é esplendorosa em toda a canção.

“Going Mobile”, cantada por Townshend, é outra canção que abusa do country rock, só que mais acelerada e repleta de metáforas e sarcasmo, uma amostra de como o guitarrista era habilidoso nas letras e na melodia.

Frequentemente confundida com uma música romântica, “Behind Blue Eyes” é uma ode à desilusão e à frustração, com fortes doses de raiva na segunda parte, mais rock e agressiva. Sempre é citada como um dos grandes momentos baladísticos do rock.

O encerramento, com a progressiva e muito pesada “Won’t Get Fooled Again”, não poderia ser outro. Projetada também para terminar “Lifehouse”, transborda amargor, ressentimento e fúria ao constatar que muita resistência e luta não são suficientes para mudar as coisas. 

Os versos finais são proféticos e soam como uma declaração política definitiva diante do cinismo e falta de esperança em todas as sociedades humanas. “We Don’t Get Fooled Again/ 
Meet the new boss / Same as the old boss”  (“não seremos enganados novamete / Encontre o novo chefe / O mesmo que o velho chefe”. Para mim, é a melhor música de rock de todos os tempos.

“Who’s Next” motivou uma série de buscas por terapias e ajudas emocionais por parte de Pete Townshend. Ele não compreendia como aquela colcha de retalhos começou a vender horrores e a ser considerada uma das maiores obras musicais de todos os tempos. 

Ele se recriminava o tempo todo. Se o compilado de restos era uma obra-prima, o que teria sido então o “Lifehouse” completo? Seria considerado ele, Townshend, o Beethoven, o Strauss. o Verdi ou o Wagner da música pop? Por que não insistiu em “Lifehouse” para virar gênio?

As contradições da vida e do mundo do rock o levaram ao alcoolismo e às profundezas das drogas, além de um sem número de terapias e conversas com psicanalistas e psiquiatras.

Só que também abriram caminho para outra obra-prima, “Quadrophenia”, de 1973, em que abordava a sua própria juventude e o mundo dos mods dos dourados anos de 1964 e 1965. Assim como “Tommy”, virou filme, peça de teatro e musical na Broadway e em Londres.

“Who’s Next” está entre as melhores das melhores coisas que o rock produziu e mostrou ao mundo que o rock era arte, e das mais refinadas. Alçou a banda ao topo da música pop e Pete Townshend como um dos gênios da arte contemporânea (por mais que ele fique exasperado com isso).

Com seu forte contexto político e a beleza melódica e harmônica de suas canções, o disco se tornou parte indissociável da música e trilha obrigatória pra entender os anos 70 e o próprio gênero musical.E também deixa claro que, assim como diria John Lennon meses depois em entrevista à revista Rolling Stone, todos os sonhos tinham acabado.

P.S.: O álbum quase se tornou duplo, mas a banda e Glyn Johns chegaram à conclusão de que seria um excesso e que o material ficaria desigual. Há boas músicas que sobraram das sessões de “Lifehouse” e que foram editadas posteriormente em coletâneas, como a estupenda “Water”, a pesada e enigmática Naked Eye”, a dramática e sarcástica “Put the Money Down”, a curiosa “I Don’t Even Know Myself”, com seu acento country, e a ingênua, pungente e esperançosa “Too Much Anything”, com seus belos arranjos de guitarra. Embora Townshend negue, “Let’s See Action”, single de 1970, fazia parte de “Lifehouse”, de acordo com Johns e o então empresário/produtor Kit Lambert. A decisão de abortar o álbum duplo foi acertada.