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A falta de empatia entre as pessoas está na gênese da cultura do cancelamento brutal que predomina hoje no planeta, principalmente nas redes antissociais. Muita gente comemorou o fato de Eric Clapton, guitarrista inglês antivacina e antimedidas de isolamento social, ter cancelado e adiado shows por testar positivo para a covid-19.

Assintomático e bem cuidado – e vacinado, apesar de tudo -, foi alvo de xingamentos e muitos “desejos” e “orações” para que morresse por ser considerado “inimigo” da saúde pública. Muitos idiotas confundiram o boicote com o cancelamento, o que vira terreno farto para injustiças e erros grotescos.

Nas artes e na cultura, esse tipo de erro é imperdoável, por mais que estejamos lidando com gente que flerta com o autoritarismo e o fascismo – tipinhos nojentos que apoiam políticos fascistas como a nojeira que ocupa a presidência da República.

A distinção é tão importante quando o posicionamento político necessário de artistas nestes tempos perigosos. É ruim para a carreira ser confundido, por conta do silêncio, com gente abjeta que não se importa com a democracia e com a liberdade de expressão – e nem merece falar aqui de artistas que frequentam ambientes degradados e podres, como os sertanejos e pagodeiros que apoiam a excrescência bolsonarista.

O boicote sempre foi um instrumento legítimo nas democracias, principalmente no âmbito da defesa do consumidor, quando se transforma em arma importante para a correção de rotas e erros.

O cancelamento é uma cultura perigosa porque costuma invalidade, na cultura, obras de arte feitas por crápulas, É difícil separar obra e alma de artistas que chafurdam no fascismo, nos escândalos sexuais, nas agressões a mulheres e em outra coisas hediondas. O boicote surge como uma possibilidade sem que a execração pública destrua a memória e a beleza de certas peças.

Boçalidade punida

No rock nacional, o caso acima se aplica a dois artistas que perdem relevância a cada segundo por conta de suas execráveis posturas políticas. Marcelo Nova (Camisa de Vênus) e Roger Moreira (Ultraje a Rigor), cada vez mais minúsculos, assim com suas bandas, fizeram coisas bem bacanas e dignas de elogio nos anos 80, especialmente no que se refere à crítica social em uma determinada época.

Não mantiveram o nível e envelheceram mal ao investir contra as medidas de isolamento social por conta da covid-10 (por tabela, se mostraram antivacinas) e vomitar a respeito da “liberdade” de ir e vir – ou seja, a liberdade de colocar os outros em risco,

Roger Moreira jogou o que restou de sua respeitabilidade e prestigio no lixo quando declara apoio a políticos de inspiração fascista, qwue investem contra a democracia e a própria liberdade de expressão. Joga contra ele mesmo.

É também o caso de Digão, hoje vocalista e guitarrista dos Raimundos, uma banda importante que se tornou inexpressiva pelas posturas pessoais e políticas de seus integrantes. 

O ex-vocalista Rodolfo Abrantes caiu no fanatismo religioso e renega o que fez de bom nos anos 90. Digão apoia políticos de viés fascista ávidos por implantar todo o tipo de censura, preconceito e ódio, exatamente como o Raimundos foram alvo com suas letras sacanas e ácidas há quase 30 anos. 

Ou seja, Digão não se importa com o fim da democracia, com a chegada dos fascistas ao poder e a eventual implantação da censura – que, “eventualmente”, poderá atingi-lo no meio da testa, a julgar pelo conteúdo das obras dos Raimundos não anos 90.

Merece um boicote? Provavelmente sim, já que renega tudo o que o rock significa. Cancelamento? Vamos esquecer a banda libertária e contestadora que os Raimundos foram por causa da lamentável postura do líder da banda?

Terrorismo

Como classificar então quem carrega acusações graves de pedofilia e mesmo terrorismo? Dave Holland, que foi baterista do Judas Priest, ficou anos preso condenado por assediar adolescentes masculinos de 10 ou 15 anos de idade e acabou tendo sua história “apagada” em sites da banda. Totalmente cancelado.

Nos Estados Unidos., o caso mais notório é o da banda Iced Earth, de power metal. Seu líder, o guitarrista Jon Schaffer, está preso acusado de terrorismo interno. Invadiu o Capitólio (o congresso americano) para impedir a confirmação de Joe Biden como presidente em janeiro de 2021. 

Ele apoiava um golpe de Estado que mantivesse Donald Trump no poder. Fotografado no interior do Congresso, teve a prisão decretada e fugiu. O FBI, a polícia federal norte-americana, o caçou por um mês, e ele se entregou. Ameaçado de passar 25 anos na cadeia, fgez acordo e está colaborando com as autoridades, mas ficará no mínimo cinco preso.

Como criticar o cancelamento de um ser deplorável como esse – extremista de direita, racista, preconceituoso, fascista e propagador de ódio? Neste caso, é quase impossível defender que não hja o cancelamento total.

Conservador e ativista do Partido Republicano, Schaffer nunca escondeu suas preferências, mas sempre evitou a contaminação do Iced Earth, uma banda razoável e de segundo escalão do metal americano com suas ideias que hoje sabemos que são podres.

Seu extremismo político aflorou/ficou mais evidente quando Donald Trump venceu a eleição de 2016. Adepto do fascismo e mergulhando em todo tipo de paranoia autoritária/totalitária, acabou afugentando todos os amigos músicos. 

Depois da invasão do Capitólio e de sua prisão, apenas um músico do Iced Earth se manteve na banda. Todos os projetos em que se envolveu,. como o Demons & Wizards (com Hansi Kursch, do Blind Guardian), foram encerrados. Perdeu gravadora, teve contratos publicitários e de patrocínio encerrados. Há que diga que é pouco pelos crimes que cometeu.

Quais são as chances de o Iced Earth não ser destroçado por essa história macabra e vergonhosa? Os administradores da banda anunciaram que vão lançar em agosto um disco ao vivo gravado em 2016 e, surpreendentemente, a primeira leva da pré-venda dos CDs físicos vendeu tudo. 

Ok, a quantidade de peças era muito baixa, mas esse resultado vergonhoso comprova que muita gente por aí despreza os ataques à democracia e o fato de que o Iced Earth é parte de uma engrenagem que apoia o fascismo. A banda merece isso?

É um assunto delicado, em que  boicote simples, no caso do terrorismo, não é suficiente para marcar uma posição, mesmo quando se trata de uma banda de porte pequeno/médio dentro de um subgênero do heavy metal.

Guerra e banimento

E quando se trata de artistas russos que silenciam a respeito da agressão criminosa e covarde da Ucrânia promovida por um ditador asqueroso como Vladimir Putin?

Artistas estão sendo boicotados e cancelados na Europa, com muita propriedade, em razão da invavsão russa da Ucrânia, uma guerra que dura três meses – uma invasão injustificada e repleta de acusações de crimes cometidos pelos invasores russos,

Se por um lado soa absurdo cancelar peças de teatro e exposições de pintores e escritores como Dostoiévski e pintores como Kandinski, o que dizer então de esportistas e artistas que se calam ou se recusam a condenar Putin?

Como condenar o boicote promovido pela organização do torneio de tênis de Wimbledon, que proibiu a participação de tenistas de Rússia e Belarus, países beligerantes na Ucrânia? Mesmo sob os protestos das associações internacionais de tenistas profissionais, os atletas dos dois países estão banidos, medida que deve ser aplaudida.

A dura discussão entre cancelamento e boicote envolve muitos aspectos e tende a ser verificada a cada caso. O que não muda é a inevitável contaminação das obras, para o bem e para o mal. 

Se o boicote não pressupõe, necessariamente, o cancelamento e o banimento, por outro lado é inútil blindar as obras – literalmente, era rebate, chicoteia e ricocheteia, como no caso da canção “Inútil”, que atingiu como um certeiro bumerangue a testa de Roger Moreira e o próprio Ultraje a Rigor.

Enquanto o fascismo, o autoritarismo, as ameaças à democracia e a censura estiverem à espreita, a convivência com o cancelamento será diária – e necessária em boa parte dos casos. O boicote é crucial e fundamental nestes tempos difíceis, mas podem não ser suficientes na luta antifascista e pela preservação da democracia.