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David Coverdale (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Ele atingiu o topo do sucesso com seu hard rock cheio de excessos, mas preferiu curtir bem a vida e deixou a obsessão do sucesso absoluto de lado. E nunca se arrependeu da escolha, como costumam confirmar os músicos que trabalharam com ele.

David Coverdale, que já foi compaado a Rod Stewart pelo fato de ser um bon vivant na música pop, chega aos 70 anos de idade realizado e pronto para a aposentadoria, ao menos dos palcos.

É o que ele vem afirmando desde setembro: a próxima turnê do Whitesnake será a última da banda e a sua última como cantor, embora não descarte shows esporádicos.

Cantor improvável e de sucesso ainda mais improvável, o inglês Coverdale era um batalhador do underground de Londres nos anos 60, um cara que topava várias paradas para conseguir um lugarzinho no mundo pop.

Humilde e consciente das dificuldades, era obcecado pelo sucesso, mas o que queria mesmo era ser ouvido cantando no rádio. Rock pesado? Passava longe de seu horizonte em 1970.

Apaixonado por música negra norte-americana e por cantoras inglesas como Dusty Springfield e P.P. Arnold, passou por uma infinidade de grupos de vários gêneros musicais até que ficou cada vez mais difícil pagar o aluguel, obrigando a trabalhar em uma loja de roupas no biênio 1972-1973.

Estava muito preocupado: o tempo passava, ele estagnava e ficava exasperado quando fazia testes e mais testes em bandas de rock. Sua voz forte, mas rouca em demasia, destoava da “moda”: cantores de vozes mais finas, afinados e que alcançavam tons muito altos, à la Robert Plant (Led Zeppelin) e Ian Gillan (Deep Purple). Pior: via vários astros de rock entrarem na loja e gastarem, rios de dinheiro. “Por que não eu?”, pensou o jovem cantor

Coube ao destino aplicar uma grande ironia ao conduzir o esforçado balconista de loja de roupa a um teste meio às escuras em uma “banda famosa e com vários discos gravados”. Quem o ouviu no primeiro teste achou interessante e o recomendou para uma avaliação mais apurada.

E eis que David Coverdale se vê na frente de Jon Lord e Ritchie Blackmore, tecladista e guitarrista do Deep Purple. Ele concorria nada menos ao lugar do ícone Ian Gillan, que cantava muito diferente dele.

Terceira formação do Deep Purple: David Coverdale está ao centro (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Para piorar, o baixista recém-contratado, Glenn Hughes, que era do trio Trapeze, também cantava, e muito. Que diabos ele iria fazer na banda? Os testes foram cansativos, a resposta demorou, mas a vaga era dele. Se era para mudar, que fosse de forma drástica pra esquecer a força e o carisma de Gillan. E não é que deu certo?

Os duetos Coverdale-Hughes nos vocais redefiniram o som do Deep Purple, que ficou cada vez menos heavy, cada vez mais hard e mergulhando no funk americano e na soul music. Quem gostou foi Jon Lord, cujos teclados readquiriram proeminência e protagonismo.

A voz rouca e forte mostrou que havia espaço para um “Rod Stewart” no rock pesado e Coverdale virou astro e líder de banda. Insatisfeito com o novo direcionamento e perdendo espaço, Blackmore abandona a banda que criou e deixa caminho livre para as experimentações sonoras ousadas do cantor e do baixista, que contaram com a resignação de Lord e do baterista fundador Ian Paice.

A tarefa, no entanto, era pesada demais para o ex-balconista agora astro de rock. Mesmo sendo aos caprichos do guitarrista americano Tommy Bolin e incapaz de lidar com os vícios em drogas e álcool de Hughes, Coverdale fracassou e decretou o fim da banda em 1976. Foram três maravilhoso discos com o Deep Purple, e Coverdale entendeu que tinha de ter o seu próprio mundo para evitar as armadilhas comerciais e dos bastidores.

A carreira solo começou quase que imediatamente, mas de forma muito discreta. Quatorze meses, dois discos, muito blues e funk e pouco sucesso o obrigaram a retornar ao rock pesado. E então surge o “Whitesnake, nome do primeiro álbum, e Coverdale ressurge como astro, agora com sua própria banda e numa mistura maliciosa de blues pesado e hard rock que tomou conta da Europa. Demoraria um pouco mais, mas os anos 80 também marcariam o domínio da banda nos Estados Unidos.

Atento às mudanças de mercado, trocou o hard bluesy da primeira metade dos anos 80 pelo hard rock grudento e cheio de excessos dos Estados Unidos, transformando o Whitesnake em gigante planetário entre 1987 e 1990 sempre secundado por uma miríade de instrumentistas do amis alto calibre – Jon Lord, Ian Paice, Mell Galley, Micky Moody, Bernie Marden, Steve Vai, Adrian Vandenberg, tommy Aldridge… E pensar que essa fase começou com as apresentações no rock in Rio, em 1985, ponto de virada na historia da banda.

Os anos 90 foram ruins e complicados. O grunge demoliu o hard rock e o heavy metal (exceto no caso do Metallica e seu “Black Album”) er o Whitesnake teve de dar um tempo. Quando se uniu a Jimmy Page em 993, precipitou-se e decretou o fim do seu grupo, para ter de engolir em seco e reativá-lo no final da década.

O Coverdale-Page rendeu apenas um disco e sete shows, em um fim até hoje pouco explicado diante de tamanho potencial. Page caiu no colo de Robert Plant de novo e a dupla foi sucesso mundial, enquanto que Coverdale tentou de novo a carreira solo em 1997 apenas para se certificar de que o povo queria mesmo era o Whitesnake de volta.

E então o bon vivant assumiu no novo século que queria mesmo era curtir a vida e o Whitesnake ficou despido da obsessão pelo sucesso. O nome já estava marcado na história. Se faltou fôlego para novas obras-primas no século XXI, sobrou competência para fazer hard rock competente e honesto em bons discos como “Forevermore”.

Viciado em Twitter e divertido nas redes sociais, Coverdale chega aos 70 anos curtindo a ótima repercussão da trilogia que revistou seus principais sucessos com mixagens diferentes e com menos excessos.

Desde o final de 2019 “The Rock Album (o branco), “The Love Album” (o vermelo) e “The Blues Album” (o azul) venderam bastante de forma digital e viraram queridinhos nas plataformas de streaming com versões mais legais e mais orgânicas do que as originais. Quem disse que não dá para inovar mesmo sem um pingo de originalidade?

Coverdale está curtindo a vida e rindo de quem o considera um roqueiro datado e ultrapassado. Escreveram outro dia esse tipo de coisa na internet brasileira. O autor só esqueceu de analisar e enumerar quantos artistas conseguiram ao menos 10% do que o cantor inglês conseguiu. E então vamos de “Stiil of the Night” para espantar o mau humor dos detratores…