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Era motivo de chacota. Enquanto o primeiro filme da série “Superman” versão moderna estourava as bilheterias dos cinemas e as revistas em quadrinhos do “Batman” eram sucesso absoluto nas bancas. 

Mas parcela significativa da molecada naqueles anos de 1977 e 1978 só queria saber de outros heróis mascarados, que gritavam, muito, ensurdeciam os “caretas” com suas guitarras e, às vezes, até voavam nos shows. Só queriam saber de rock todas as noites e festas em todos dias na sua venerada “Detroit cidade do rock” – embora fossem de Nova York.

Eram os heróis improváveis, mas que faziam muito mais sentido do que aqueles da Marvel, DC Comics e outros estúdios e conglomerados. Desdenhavam dos “inimigos” e cantavam o amor e a felicidade. E assim o Kiss foi a porta de entrada para toda a uma geração de amantes do rock.

Para muitos de nós, foram tão importantes ou ainda mais do que os Beatles, idolatrados pelo quarteto mascarado. Celebravam a vida, a diversão e estimulavam uma certa rebeldia contra um mundo feio e cinzento que seria chacoalhado pelo punk rock na época – mas não a ponto de afetar o sucesso do Kiss.

Diversão e negócios sempre andaram juntos na carreira do Kiss, a ponto de haver quase tudo no mundo com estampas do Kiss – de lancheiras a cadernos, de tacos de beisebol, de sacos plásticos de supermercados a bonecos dos próprios músicos. Quinquilharias de todo o tipo ajudaram a colocá-los no topo do mundo.

O Kiss e seus integrantes mascarados foram os nossos Beatles, com músicas de apelo fácil e rocks energéticos, falando uma linguagem que Led Zeppelin, The Who, Rolling Stones, Queen e Yes, entre outros “dinossauros”,  tinham perdido – pudera, já tinham 10 ou 15 anos de estrada e envelheceram junto ao seu público…

Os mascarados falavam às meninas mais bonitas, mas exaltavam o empoderamento da galera que não tinha dinheiro, que era desprezada pelos ricos e valentões da escola – exatamente como tinha ocorrido nas infâncias de Gene Klein (Gene Simmons), Stanley Eisen (Paul Stanley), George Peter John Criscuola (Peter Criss) e Paul Daniel Frehley (Ace Frehley). Eram feiosos, pobres, mas durões o bastante para se virar em um ambiente inóspito, violento e perigoso nos arredores de Nova York entre 1963 e 1973.

E aí aparece a grande diferença em relação aos Beatles da fase 1962-1965: o Kiss não fazia questão de ser certinho. Se os ingleses queriam pegar na mão da garota (do hit açucarado “I Want to Hold Your Hand”), os mascarados de Nova York faziam questão das garotas que os deixavam loucos (“she drives me crazy”, verso da música “Rock and Roll All Night”, talvez o maior hit da banda).

Tudo bem que tudo estava a anos-luz da rebeldia e da contestação politizada dos punks ingleses, dos metaleiros da nova onda do metal britânico e dos thrashers californianos, que soterrariam tudo nos anos seguinte. Sendo assim, era o que tínhamos, e o Kiss era o suficiente para irritar pais, professores e toda a sorte de conservadores castradores que viam o rock, em plenos anos 70, como perigoso, alienante e repugnante.

O Kiss é uma banda carregada de história dentro e fora dos palcos e discos. São 50 anos desde os primórdios do Wicked Lester, a origem do Kiss. Sua importância, em todos os sentidos, é imensa, dando um sentido completamente novo para o rock enquanto entretenimento e visão de negócio.

Com uma produção irrisória em termos de novas músicas – somente três álbuns de inéditas nos últimos 25 anos -, faz algum sentido questionar a relevância artística do Kiss de hoje, por mais continue lotado as arenas e mostrando um show que é muito difícil de igualar. 

São 50 anos nas constas e tentando sobreviver a um mundo que pulverizou a indústria dos discos, dizimou o mercado mas não conseguiu derrubar os custos de produção. Por mais que tentemos, o Kiss não mobiliza mais a juventude do século XXI – contam-se nos dedos as atrações roqueiras que o fazem hoje em dia.

O clichê está sendo largamente usado e sem parcimônias, mas traduz bem o sentimento: o Kiss é o retrato do rock nesta terceira década do século XXI: ainda tem capacidade de mobilização, rende alguma manchete, oferece uma tonelada de hits, mas não consegue espantar a aura de objeto do passado. Neste ponto, a correlação com os Rolling Stones e The Who, ainda na estrada com 60 anos de carreira, é direta.

The Who, aliás, tocou em São Paulo e no Rock in Rio em 2017. Foram grandes espetáculos que mobilizaram mais de 50 mil pessoas. Havia muitos jovens, movidos por uma curiosidade legítima, mas, às vezes, mórbida, de tentar presenciar um passado fossilizado. 

Já tinha sido assim com o próprio Kiss anos antes, com o Iron Maiden em várias vezes, com os Stones em São Paulo pela última vez, e até mesmo com o Rush, em 2011. Para os habituais frequentadores de grandes shows, essa tendência ficará mais escancarada no Allianz Parque com o Kiss. 

Se o público do Coldplay e do Radiohead, as últimas grandes bandas ao lado Muse, envelheceu, imagine então o do Kiss e de todo o classic rock que ainda insiste em assombrar plateias mundo fora?

Estabelecidas todas essas condições, o clichê é apropriado: o Kiss vai fazer falta. Ao tudo indica, é a última turnê do quarteto. 

Ignoremos a ideia meio estapafúrdia de Gene Simmons de colocar substitutos para tocar mundo afora quando ele e os companheiros se aposentarem: o Kiss é aquele que conhecemos e que nos introduziu ao rock e ao mundo da música pesada. Jamais deixará de ser o maior espetáculo da Terra. Afrontoso, perigoso e emocionante. Insuperável.

Ouvir o famoso “You Want the Best, You Got the Best…” (“Vocês querem o melhor, vocês terão o melhor”) sabendo que será provavelmente a última vez por aqui não será agradável. Sentiremos falta da festa todos os dias e do rock toda noite, nada superará a gratidão por terem se tornado nossos heróis lá nos longínquos anos 70. quando o rock incomodava e era perigoso.